Já
o fazendeiro é o português patrão, representante do poder local, que
quer o seu novilho a todo custo, mesmo que para isso tenha que atirar e
matar o vaqueiro, imbuído que está de uma ordem constituída pela força
econômica, tal como é recontado pelo poeta César Teixeira no Auto do
Boi de Morros:
“Depois
de conferir o gado pelas capoeiras e ver que faltava o novilho de
estimação do amo, o vaqueiro¹
chega na fazenda preocupado e matutando a sorte de tal
atrapalho.
AMO - Rumbora, desembucha vaqueiro. Isso é cara?
VAQUEIRO - É aquele touro
novo, meu amo. Sumiu! Acho que foi furto ...
AMO - O quê? Quem
foi o filho de égua que me traiu?
VAQUEIRO - Siô! Num
sei não.
AMO - Vai atrás desse boi,
vaqueiro!
Quero ele aqui, inda hoje, junto com o chifrudo do ladrão, sendo é tu
que vai entrar no relho.
O vaqueiro vai e volta sem encontrar o touro bonito, nem tampouco o
lalau.
VAQUEIRO - Meu amo, só tem um jeito. É chamar as indigenas²,
que elas conhecem bem o mato e não se avecham com cobra de duas cabeças.
AMO - As
capetas-de-pena? Vai buscar!
No clarão da lua, as índias, já sabedoras do acontecido, partem armadas
de arco e flecha. Atravessam rios e morros cantando para
afastar
a caipora, sem nada encontrar.
VAQUEIRO - Nem boi, nem cabra, meu amo.
AMO - Ah! Hoje eu
viro o diabo pelo
avesso, mas amarro o rabo desse mequetrefe no pau do chiqueiro!
VAQUEIRO - Amo! Dei
uma volta no miolo e
encontrei outro buraco. Conheço um marido e uma mulher que podem dar
uma resposta para essa teima. É o Pai Francisco e a Mãe Catirina, dois
mutucas de asa... Sabem de tudo!
AMO - Intonce. Manda chamar!
Chega o Nego Chico desconfiado que nem tralhoto, querendo assuntar e
desassuntando. Cara lavada, mas não é besta.
CHICO - Patrão, como vai a família? Tá gorda, hem? Mas, pro
que lhe pergunte ...
AMO - Não tem que perguntar. O
Sinhô é que vai
me dizer se viu um touro assim, assim, que sumiu do campo sem deixar
nem rastro de cocô.
NEGO CHICO - Não vi, não. Juro!
VAQUEIRO - Ora! Sei
num sei. Só sei que
Mãe Catirina tava com uma vontade doida de comer língua de boi. Desejo
de mulher prenha, meu amo!
AMO - Ah, então tá explicado...
Mãe Catirina vendo tudo perdido, assoa o nariz e reza o terço, mas não
se faz de rogada. Com o bucho no pescoço, mascando fumo, bota um pé na
frente e outro atrás.
CATIRINA - Não é fio, meu amo. É barriga d'água! Oia como
sacode... É, num é, Chico?
CHICO - Verdade, é o fato!
AMO - Nem choro, nem
pagamento. Pensa que me
engana? Quero meu boi de volta, igualzinho como nasceu, senão o cacete
come!
CATIRINA - Vige Maria!
Chico e Catirina saem correndo, de mãos dadas, já sentindo o couro
arder. Resolvem então roubar numa fazenda vizinha, um novilho parecido
com o touro do amo, a quem entregam a prenda. No terreiro do patrão
todo mundo cerca o novilho para ouvir o seu urro.
AMO - Quero ver se esse boi tem culhão
CATIRINA - Vige Maria.
E não é que o boi urrou bonito?”
Em
outra versão popular (Azevedo Neto, 1983, p. 52-53), as indígenas
conseguem capturar Chico, que é levado à presença do amo, juntamente
com Catirina e o cadáver do boi.
“Não
chora Chico não chora,
que nós
não vamos te matar.
vamos te
entregar para o Senhor Branco
prá ele
te ensinar.”
Imediatamente é chamado o curador
que, ao constatar a morte do boi, canta:
“Quem
matou este boi,
boi de
fama, boi de peso,
Eh, Pai
Francisco, foi tu!
Amo,
cheire a boca do boi
e Chico,
tu cheira o cu."
Chico,
porém, reage:
“Se
alguém me conheceu
já se viu
que tu não foi
Não sou
home pra essas coisa
de cheirá
um cu de boi.”
Indignado
ante a recusa, o amo manda que batam em Chico e, quando Catirina tenta
intervir, é ameaçada de ser surrada também. Depois de muita confusão,
Chico resolve confessar o roubo, enquanto o pajé ressuscita o boi para
alegria geral. O amo perdoa Chico e faz uma grande festa para comemorar
a recuperação do novilho estimado da fazenda. Às vezes, no meio da
confusão, é chamado o delegado para obrigar o Chico a confessar, mas
covarde e sem tropa a acompanhá-lo, o delegado é apenas ridicularizado
ante a astúcia de Chico.
Outra
personagem muito comum é o doutor médico, caricatura arremedada de
veterinário, que é chamado para ressuscitar o boi morto, mas o máximo
que consegue, ao proferir diagnósticos esdrúxulos e incríveis receitas,
é fazer com que o bicho mexa o rabo. É obrigado a chamar o pajé da
aldeia para cumprir a tarefa, este sim, o verdadeiro conhecedor do
caso. Também o padre, cuja figura aparece com a violência de um ajuste
de contas, vem em algumas versões acabar com a confusão ou ajudar a
ressuscitar o boi, através de suas orações, mas sua atuação é um
vexame, sendo por isso depreciado na ação dramática.
É o mesmo
Azevedo Neto quem repete outra versão, cujo enredo moralizador
demonstra a herança do teatro catequético. Nesta estória, Pai Francisco
é um homem sério, honesto e trabalhador, mas que diante do desejo de
Mãe Catirina em comer a língua do novilho, divide-se entre a
responsabilidade da sua tarefa de vaqueiro e o dever de pai em atender
ao pedido da mulher grávida. Na verdade, o desejo de Catirina é uma
mentira inventada pelo fazendeiro numa aposta com outros fazendeiros
para colocar a honestidade de Chico à prova.
Depois de matar o
novilho e atender ao pedido de Catirina, Chico pega o cavalo e vai
contar o ocorrido ao amo, pensando em como relatar o fato. Após matutar
as mil e uma formas de descrever os acontecimentos, sem
responsabilizar-se diretamente, não consegue chegar a nenhuma conclusão
quando chega à casa do patrão.
Por não saber mentir, acaba contando
a verdade e fica à espera do castigo merecido, mas é perdoado pelo
fazendeiro que providencia a ressurreição do boi e festeja a volta do
honesto Chico. 1-
O vaqueiro é sempre um subalterno do patrão, o empregado de confiança a
quem é entregue a responsabilidade da fazenda e tudo o que ela contém.
É também um exímio dançarino, mostrando as suas capacidades cênicas no
encontro com o boi durante a dança: “No meio da roda de brincantes, boi
e vaqueiro se defrontam, calcando o chão com golpes certos de
calcanhar. De repente, quando o batuque se acelera, o vaqueiro cola o
ombro esquerdo no flanco do boi, quase na frente, à altura da cabeça do
animal e forma com ele um bloco único, acompanha-o no menor movimento”.
O boi e o vaqueiro formam um par indissociável do folguedo, um pela
destreza com que arrebata, o outro pela persistência como escapa ao seu
amansador. (LIMA, 1982, p. 19)
2-
Na trama, os indigenas possuem importância igual ou inferior ao
vaqueiro,
mas sua função é fundamental na resolução do conflito, porque sem seu
conhecimento da floresta e dos seus mistérios seria impossível
descobrir a localização do boi.
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