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Charqueada
A indústria do charque no Brasil está estreitamente ligada ao desenvolvimento da pecuária que, no Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás e São Paulo permitiu a instalação de vários estabelecimentos do gênero.
Nesses estabelecimentos, denominados charqueadas, o gado é abatido para o fabrico da carne seca salgada, mais conhecida na Amazônia por "jabá"; no Nordeste por "carne-do-sertão", "carne-de-sol" e "carne-de-vento"; no Centro do país por "carne-seca" - simplesmente - e, no Sul, pela denominação "charque", palavra de origem incerta, mas que parece provir para muitos, da língua árabe, onde cherca equivale a carne salgada e charraca tem o significado de "secar ao sol carne salgada". No Rio Grande do Sul, com particularidade, aqueles estabelecimentos constituem, com as estâncias, dois conjuntos econômicos de invulgar valor para a riqueza da importante unidade da Federação.

Se nas estâncias se criam, sobretudo, grandes manadas de gado vacum, nas charqueadas se abate enorme porção do mesmo para o efeito de alimentação geral e, principalmente, para o comércio de carnes salgadas, as quais, quanto à exportação, se grupam atualmente em quatro classes: "mantas", "patos", "postas" (paletas e patinhos) e "cavacos", tudo muito bem acondicionado em bolsas de aniagem, de costura dupla, devidamente marcadas.

As charqueadas alimentam-se dos produtos das estâncias sendo ambas, em muitos casos, propriedades de um mesmo dono.
Charqueada
Charqueada - Ilustração de Percy Lau
Hoje, um aparelho controlador dos mercados - O Instituto Sul-Rio grandense de Carnes - substitui a tarefa do antigo Sindicato dos Charqueadores. Desde a sua fundação, regulava, aquele Sindicato, a matança estadual em 28 charqueadas do Rio Grande do Sul, quer determinando a data do início e do encerramento da charqueação, quer controlando a distribuição conveniente do produto, segundo as exigências do mercado.

Fora do Estado sulino, que se mantém, aliás, à frente dessa indústria tradicional, encontram-se em Minas Gerais 13 charqueadas, em Mato Grosso 10, em São Paulo 7, e outras tantas em Goiás, no mínimo.

O aspecto da charqueada pode ser descrito em traços gerais.
Ordinariamente, ao lado do pavilhão principal, estendem-se as "manqueiras", dispostas em série - "curralões" - separadas entre si por cerca de pedras, ou moirões, cada qual com dois ou três metros de altura. Do lado exterior fica o respectivo "'brête" - espécie de corredor estreito -. onde o gado é reunido para a "espera" que precede o sacrifício.
Todas as "mangueiras", aliás, estão ligadas entre si por meio de corredores pequenos. A comunicação, ou não, entre os diferentes cercados, realiza-se pela subida ou descida de grandes portas, ou tapumes de chapas de ferro regulados por um sistema de contrapesos, que funcionam segundo as necessidades do momento e as circunstâncias ocasionais.

A proporção que mais se aproximam do pavilhão principal da charqueada, os "mangueirões" vão-se reduzindo, em dimensões, até possuir, cada qual, capacidade apenas para umas dez ou vinte reses.

A matança geralmente principia pela madrugada. As vezes, começa à meia--noite, precedida, em ambos os casos, por um apito anunciador do próximo começo do sacrifício. Das "quadras" e dos "boliches" partem, então, para o recinto da charqueada, os trabalhadores, tanto os "de faca" - carneadores, despostadores, manteiros, descarnadores de couro, tripeiros - como os "salgadores", que manejarão as pás nos tanques com salmoura; tanto os "carranchos", isto é, os carregadores, os mergulhadores da carne nos tanques, quanto os demais auxiliares braçais em número variável.

A operação da "matança" é precedida por indispensáveis preparativos. PEDRO R. WAYNE rememorou, sintáticamente, em seu romance Charqueada, editado pela Livraria Guanabara, Rio, 1937, a cena a que, por várias vezes, certamente assistira: "Carrinhos carregados de sal se derramavam no monte farto e branco que clareava alto num canto da salga pronto para ser lequeado pelas pás ágeis dos salgadores. Os largos portões abertos recebiam a ventilação da viração que passava e entrava para ir lá dentro arejar a cancha. Os tanques limpos, cheios de salmoura, borbulhavam bem dosados. As canaletas que cortavam a cancha para dar escoamento às águas, eram tapadas nas bocas por guardar as salmouras que escorressem das carnes molhadas, depois de ganchadas dos tanques em que mergulhavam. Azeitava-se zelosamente o guincho de vapor que arrastava os animais amedrontados para o sacrifício. Taravam as balanças. As zorras sobre os trilhos como braço pelo qual iam ser puxadas estendido, descansando no chão de cimento. As tinas de cozinhar os ossos destapadas. Os laços experimentados para não rebentarem. As facas de dois gumes, com que desnucavam as reses, sobre a parede alta da mangueira, ao alcance da mão do desnucador. A instalação elétrica, examinada; não fosse faltar a luz. O nível da água, cuidado; para que não faltasse água na cancha. E o capataz, lenço de palha-de-seda no pescoço, revólvel 38, atravessado na frente ostensivamente, tamancões pesados ... "

Em épocas passadas, o abatimento do gado se realizava em moldes bastante cruéis e desuniformes, segundo os lugares. Nas localidades mais próximas da fronteira uruguaia, por exemplo, usavam-se particularmente métodos inexpeditos e inseguros, além de requintada selvajaria. Hoje, porém, apesar de não se ter ainda avançado - numa apreciação de conjunto - tanto quanto seria de desejar, a operação da matança se realiza, comparativamente, mediante processo muito mais racional.

Ordinariamente e sem considerar as modificações impostas pela experiência e as variações fatais de lugar para lugar, a sequência dos trabalhos é, no fundo, a mesma já descrita, em 1839, pelo negociante-geógrafo-amador NICOLAU DREYS, em sua Notícia Descritiva da Província do Rio Grande, reedição, em Porto Alegre, da Livraria Americana, com um esboço crítico de ALFREDO F. RODRIGUES, ou análoga à que no-la dá PEDRO R. WAYNE, em Charqueada, ou à que se encontra, por exemplo, no livro de W. H. HARNISCH - O Rio Grande do Sul - A Terra e o Homem, edição da Livraria do Globo, Porto Alegre, 1941.

Evidentemente, o modo de matar o gado - primeira operação da charqueada - deve influir sobre o asseio do estabelecimento, conforme já acentuara em 1839, NICOLAU DREYS.
Morto O boi, e depois de retalhado, seguem as mantas, isto é, as partes musculares, ou as postas de carne, para o "salgadeiro" ou "salga", lugar onde a carne, na charqueada, recebe o sal. Depois são empilhadas, para perder a umidade e assim permanecem até ficarem completamente enxutas.
Do salgadeiro vai então a carne para os varais. Os varais ocupam grande extensão de terreno. São constituídos de espeques arruados numa distância de 4 palmos, por 4 de altura e atravessados por varas, nas quais são suspensas as mantas para o efeito de secarem ao sol e ao vento.

Depois de seca é a carne disposta em forma de grandes cubos oblongos, arrumados sobre um assoalho, distante de 3 a 4 palmos do solo, a fim de permitir a passagem do ar. Nesse estado, coberta de couros, aguarda as operações necessárias ao embarque, segundo condições anteriormente apontadas. O dinamismo característico de todo o trabalho de charqueação é realmente de impressionar. W. H. HARNISCH dá-nos um flagrante sugestivo da cena real observada, após a matança, a que assistira em 1940, na Charqueada Santa Teresa, Bajé, Rio Grande do Sul: "Mal cai o corpo, uma faca corta a carótida. Abre-se a torrente de sangue que corre sobre o cimento. Mais um talho com mão firme e a cabeça rola para o lado. Os carneadores, como hábeis cirurgiões, manejam com rapidez incrível a faca. Num abrir e fechar de olhos - quase se poderia aplicar esse termo - o couro solta-se da carne da rês e, em seguida, os descarnadores o colocam sobre largos cavaletes rasos, onde operam os últimos retoques da limpeza total, sem deixar o menor pedaço de carne ou aderência desta. O couro passa pela salga e, finalmente, atiram-no no monte que se vai formando.
Neste ínterim, os intestinos saltam dos buchos abertos e vão rolando sobre passadiços, conduzidos por rapazes que levam ganchos nas mãos. As vísceras vão para a secção "triparia". E sempre no mesmo diapasão, os carneadores limpam a carne dos ossos, dividem-na em duas partes dianteiras e traseiras e a enviam aos charqueadores propriamente ditos. Esses trabalham à parte, junto a mesas grandes. Assemelham-se a alfaiates, cortando fazenda rubra de sangue. Dão à carne a forma de pequenos tapetes. Os despostadores extraem os últimos pedaços de carne do esqueleto. Em nuvens de fumo e de sangue, esses trabalhadores ficam de cócoras dentro da armação do esqueleto, à maneira de prisioneiros em gaiolas. É possível vê-los trabalhar dentro daquelas grades de ossos. Dentro do espaço de oito horas, devem estar sacrificadas e devidamente preparadas quinhentas reses. Dá sessenta cabeças por hora. A cada minuto o matador sangra um animal, uma vez por minuto a zorra corre de um lado a outro, e dentro de doze minutos cada rês está esquartejada. Desapareceu ... "

Em rigor, saladeirista ou charqueador é o proprietário da charqueada ou saladeiro. No Rio Grande do Sul, o charque - segundo ROQUE CALLAGE, em seu Vocabulário Gaúcho - constitui indústria que não somente é exercida pelos saladeiros, porém ainda pelos numerosos criadores de pequenos recursos e, também, por alguns frigoríficos. Aliás, a preparação do charque, "carne-de-sol" e "carne--de-vento", é comum ente praticada nas fazendas de quase todo o Brasil interior, embora sob forma rudimentaríssima. E tão familiar é o charque ao homem do país que, ao lado do feijão e da farinha de mandioca, tem a carne seca figurado como alimento básico na cozinha sertaneja. Além disso é elemento indispensável no preparo do prato nacional universalmente conhecido por "feijoada brasileira".

A primeira fase importante da industrialização do boi no Rio Grande do Sul - onde a indústria do charque é típica - data de 1870, ao fundar o cearense JOSÉ PINTO MARTINS a primeira charqueada de grande porte, localizada às margens do rio Pelotas, à distância de uma légua de sua foz.
Levara para o Sul a experiência colhida pelo Nordeste quando, desde os meados do século XVIII, a produção do charque se iniciava no Ceará, e se desenvolvia a ponto de a indústria saladeril lá abater, para charquear, cerca de 20 mil reses anualmente. Nunca, porém, conseguiu a indústria cearense ultrapassar os estreitos limites de um mercado regional, restrito a certos trechos da Bahia, Pernambuco e Maranhão.
Tampouco, jamais ultrapassou a fase de uma industrialização rudimentar, o surto verificado no fabrico da chamada "carne-do-ceará", em alguns pontos da região costeira do Rio Grande do Norte - como Açu e Mossoró - apesar das vantagens locais proporcionadas pelas salinas e portos de saída fácil para exportação do charque. A iniciativa de PINTO MARTINS teve, pois, o duplo mérito não só de provocar, no Rio Grande do Sul, a indústria de carnes, em ampla proporção, como de estimular e valorizar - paralelamente - a pecuária gaúcha, cuja produção, cada vez maior, foi, sem dúvida, favorecida pelas condições naturais dos pastos que, por seu turno, contribuíram para o legítimo êxito de uma exploração realizada em bases economicamente interessantes.

De início, alimentando a capital da República; depois, o próprio Nordeste, o Rio Grande do Sul foi gradualmente conquistando todo o mercado nacional.
Não obstante o aparelhamento atual, compreendendo as grandes instalações modernas que visam à explotação de carnes frigorificadas e enlatadas para o estrangeiro - conseqüência da situação criada pela grande guerra de 1914-1918 - as charqueadas têm, ainda hoje, o mercado nacional definitivamente assegurado. Para esse efeito concorreram inquestionavelmente - por um lado - as condições de existência peculiares do Brasil interior e - por outro - a dispersão dos respectivos habitantes. Impossibilitada de se alimentar de carne fresca - em quantidade suficiente - constitui a população interior uma firme e numerosa clientela, capaz de manter por muito tempo o prestigio das charqueadas.

O espetáculo das charqueadas continuará, assim, montado com todas as peças para a temporada, que se repete de dezembro a junho, de cada ano, revestido, porém, de trágica mas necessária amargura: homens e animais reunidos diante da morte lutando pela vida. Uns, matando para viver. Outros, associados na morte, pagando com o sacrifício, a manutenção da vida humana.

Fonte: Charqueada / José Veríssimo da Costa Pereira in Tipos e Aspectos do Brasil. - Departamento de Documentação e Divulgação Geográfica e Cartográfica / Instituto Brasileiro de Geografia / Fundação IBGE. - Rio de Janeiro, 1970


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