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A
loja vizinha é ocupada por dois negros livres. Antigos escravos de
ofício, de boa conduta e econômicos, conseguiram comprar sua alforria
(possibilidade legal que lhes devolveu a liberdade e lhes assinou o
lugar de cidadãos, que ocupam honestamente na cidade). Quem, com
efeito, ousaria dizer-se mais digno da consideração pública que este
oficial de barbeiro brasileiro, ante a lista pomposa de seus talentos
afixada na porta da loja? Infatigável até na hora do repouso geral,
vemo-lo afiar as navalhas numa mó, que outro negro faz girar, ou
consertar meias de seda, ramo de atividade explorado exclusivamente nos
seus momentos de lazer. Sua modesta loja acha-se, neste momento, escura
e abandonada, mas dentro de duas horas estará perfeitamente iluminada
por quatro velas já preparadas nos castiçais do pequenino lustre,
economicamente construído com alguns pedaços de madeira torneada,
reunidos entre si por um arame cujos contornos variados formam os
caules de uma folhagem de zinco.
Um vizinho do barbeiro, negligentemente largado perto da janela, com o leque chinês numa das mãos, deixa a outra para fora, entregue à agradável sensação do ar fresco. Recém-acordado e com o estômago cheio de água fresca, olha com indiferença o tabuleiro de doces que lhe apresenta uma jovem negra, à qual, por desafio, faz algumas perguntas sobre seus senhores. Mas logo, aborrecido com essa distração inútil, manda-a embora com esta frase de pouco-caso: “Vai-te embora”, expressão grosseira, empregada em todos os tons, desde o mais amistoso até o mais injurioso. Essa solução destrói as esperanças da vendedora, bem como do pequeno cão que aguarda humildemente um pedaço de doce. |
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A
cena aqui desenhada passa-se nas proximidades do Largo do Palácio,
perto do mercado de peixe. Dois negros de elite estão sentados no chão;
a medalha do que está ensaboado indica sua função na alfândega. Ambos
aguardam, numa imobilidade favorável a seus barbeiros, o momento de
remunerar-lhes a habilidade com a módica importância de dois vinténs.
A forma e os ornatos dos chapéus dos jovens barbeiros datam da época da fundação do império brasileiro. Com efeito, naquele momento de entusiasmo nacional, as freqüentes revistas e paradas introduziram o gosto pelas coisas militares em todas as classes da população, e os negros, naturalmente imitadores, transformaram o schako* em um chapéu de palha grotesco, ornado de uma roseta nacional e de dois galões pintados a óleo; uma pena de pássaro substitui o penacho do uniforme. O outro chapéu é também de palha, pintado a óleo com as cores imperiais, verde e amarelo. A invenção se deve aos negros, pintores dos cenários usados pelos senhores nas festas públicas, e o resultado parece tanto mais feliz quanto a camada impermeável prolonga indefinidamente a vida do frágil chapéu de palha. |
Barbeiros ambulantes Registro de Debret - Início do século XIX no Rio de Janeiro. |
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Relegados,
em verdade, para o último degrau da hierarquia dos barbeiros, esses
Fígaros nômades sabem, entretanto, tornar sua profissão bastante
lucrativa, pois, manejando com habilidade navalha e tesouras,
consagram-se à faceirice dos negros de ambos os sexos, igualmente
apaixonados pela elegância do corte de seus cabelos. Compenetrados e
sagazes, vagueiam desde manhã pelas praias, nos pontos de desembarque,
pelos cais, nas ruas e praças públicas, ou em torno das grandes
oficinas, certos de encontrar clientes entre os negros de ganho
(carregadores, moços de recados, os pedreiros, os carpinteiros, os
marinheiros e as quitandeiras).
Um pedaço de sabão, uma bacia de cobre de barbeiro, quebrada ou amassada, duas navalhas, uma tesoura, embrulhados num lenço velho à guisa de maleta, eis os instrumentos com que lidam os jovens barbeiros, apenas cobertos de trapos quando pertencem a um senhor pobre, e sempre dispostos, onde quer que se encontrem, a aperfeiçoar seu talento à custa dos fregueses confiantes, que consentem em entregar-lhes a cabeleira ou o queixo. Alguns entretanto, mais hábeis, dotados mesmo do gênio do desenho, distinguem-se pela variedade que sabem dar ao corte de cabelo dos negros de ganho, sobre a cabeça dos quais desenham divisões pitorescas, formadas por chumaços de cabelos cortados com a tesoura e separados uns dos outros por pedaços raspados a navalha e cujo colorido mais claro lhes traça o contorno de uma maneira nítida e harmoniosa. Aparentemente vagabundos, são no entanto obrigados a se apresentar duas vezes por dia na casa de seus senhores, para as refeições e para entregar o resultado da féria. Outros sabem aliar a vivacidade à destreza e conseguem maiores resultados postando-se em certos dias e a certas horas na estrada de Mata-Porcos a São Cristóvão, pois aí encontram as tropas que chegam de São Paulo e Minas e cujos tropeiros, após uma longa viagem, se mostram sempre dispostos a cortar a barba para entrar mais decentemente no Rio. |
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