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Diário de Naegação de uma expedição pelo rio Tietê
de uma expedição pelo rio Tietê
Em 10 de março de 1760 partia de Araritaguaba, rumo ao presídio do Iguatemi, uma expedição acomodada em 36 embarcações e composta por “setecentos e tantos homens, mulheres, rapazes, crianças de todas as idades”, além dos soldados pagos e dos animais. A viagem duraria dois meses e dois dias, e dois anos e dois meses a estadia, no Iguatemi, daquele que a comandaria, o sargento-mor Teotônio José Juzarte, auxiliar direto do governador de São Paulo, Morgado Mateus, em suas investidas sertão adentro.
Situado na margem esquerda do rio do mesmo nome, o presídio tinha sido construído em 1767 pelo ituano João Martins de Barros, integrando um conjunto de medidas da administração colonial destinado a fazer do Tietê uma linha estratégica que possibilitasse a ocupação mais efetiva do Oeste e do Sudeste e, ao mesmo tempo, contivesse os eventuais avanços dos espanhóis.
Almeida Júnior
Ilustração de Almeida Junior: A partida da monção
A viagem foi uma odisséia. Logo no começo, duas das mulheres pariram. Uma, de nação Bororo, retirou-se “um pouco do tumulto de gente”, e junto ao mato de uma prainha, deu à luz a criança, levando-se em seguida, e sempre sozinha, para banhar-se com ela no rio; no dia seguinte, “andava sem moléstia alguma”. 

A outra, solteira e filha de um povoador, achava-se grávida sem que a família soubesse; não podendo mais sofrer os “ardores do parto”, e sem condições de retirar-se, teve que expor sua intimidade, parindo “publicamente no meio e à vista de tanto povo”. Passado poucos dias, manifestou-se entre os povoadores uma diarréia generalizada, então vulgarmente conhecida por corrução. Mais uma vez, violou-se o caráter privado de atos íntimos, os doentes tendo de fazer suas necessidades corporais onde fosse possível, uns tentando se esconder nos matos, outros, desfalecidos e sem poder se movimentar, tendo de ser carregados em redes ou removidos pelos sãos. 

Em seguida, sobreveio uma tempestade, sendo necessário embicar as embarcações no barranco e prendê-las com cordas de ferro aos troncos e às raízes das árvores das margens; as rezas e ladainhas não impediram que caíssem dois raios. Passada a noite dos horrores, amanheceu morta uma criança, dando-lhe sepultura no mato. Decidiu-se então que era melhor saltar em terra, cada família fazendo uma fogueira para se aquentar e cozinhar comida – como que tentando refazer, após tanta exposição pública de dores, vergonhas e doenças, a privacidade esfrangalgada. Quando os que saíam atrás de onça voltavam bem aquinhoados, os animais eram repartidos entre os povoadores; primeiro se serviam os doentes e os mais necessitados, e “cada um por sua parte, uns assando, outros cozendo, cada um cuidava da sua comida”. Mas bastou uma praga de carrapatinhos para que todos tivessem que ficar nus; o máximo que o pudor conseguiu foi dividirem-se os gêneros: de um lado, os homens se esfregavam com o popular caldo de tabaco de fumo ou bolas de cera da terra; do outro, “as mulheres lá se remediavam umas com as outras, e todos conforme podiam, e permitia a ocasião.

Mas se por um lado o convívio imposto pela viagem tolhia a intimidade das famílias e dos indivíduos, o isolamento total podia, em certas circunstâncias, pôr a vida em risco. Numa tarde, quando preparava o pouso na barra de Piracicaba, perdeu-se um dos homens que havia saído para caçar. Era um dos trinta soldados pagos que acompanhavam os povoadores; pelo mato e pelo rio seguiram destacamentos atirando, no intuito de orientar o perdido. Já noite, às oito horas, ouviram gritos do infeliz, e deram com ele trepado numa árvore, “sem saber em que parte estava, e disposto a ficar e morrer naquele sertão”. Contou que lá subira acossado por um bando de porcos-do-mato, perseguidos, por sua vez, por uma onça de “extraordinária grandeza”; os companheiros resgataram-no da incômoda pousada. Outro episódio curioso envolveu uma família, ansiosa, talvez, por buscar certa intimidade dentro do convívio promíscuo da expedição: às dez horas da noite, soltou-se rio abaixo uma embarcação em que dormiam uma mulher, seu marido e dois filhos; acordaram à mercê da correnteza, e “sem governo algum”, pondo-se a gritar pedindo socorro aos companheiros. Da margem do rio, uma sentinela viu passar o barco desgarrado, alertando, aos brados, os homens de um batelão, que, nus, conseguiram reconduzir os quase-náufragos ao pouso.
Não bastassem os acidentes a envolver a expedição de povoadores e seus membros – os doentes, cujo número aumentava sempre, dando cuidado aos demais e atrasando a viagem; as mulheres que pariam, acudindo-se-lhes conforme podia ser; o mantimento que escasseava, as farinhas corrompendo-se com a umidade e o feijão brotando todo; a lenha, já pouca para fazer fogo e esquentar gente -, havia os perigos do rio.

Partida de uma Monção
A partida da monção - Almeida Junior - Museu Paulista

O Tietê, de navegação acidentada, era considerado um rio saudável. Já o Paraná – ou Grande, como então se dizia -, quase sem cachoeiras, era sujeito a ventanias, a redemoinhos e sorvedouros fortíssimos e, principalmente, tinha fama de pestilento e doentio.

Por fim, passados dois meses, chegou-se à praça do Iguatemi. A fortificação heptogonal, no estilo consagrado por Vauban na França, achava-se inacabada e não dava defesa alguma... A Igreja, desprovida de qualquer ornamento, fora fabricada com parede de mão, e o telhado era de casca de palmito. As casas, construídas da mesma forma, tinham o teto de capim. Havia duas fontes boas de água. A guarnição compunha-se de um capitão-mor regente, um capitão de infantaria vindo do Rio para, como engenheiro, fortificar a praça, três companhias de paisanos pedestres e seus oficiais competentes, totalizando cerca de trezentos homens. Achava-se nua, morta de fome e sem comunicação com parte alguma.
No domicílio novo, os povoadores tentaram aos poucos organizar sua vida, improvisando soluções. Em “uma gamela de pau, se batizaram cinco crianças que nasceram pela viagem”. As famílias receberam, cada uma, “chãos para fabricarem suas casas dentro da praça”, e terra, fora dela, para cultivarem roças. Mas a pobreza geral impunha demoras: faltavam artifices, ferramentas, meios par remunerar o corte das madeiras e seu transporte dos matos para o povoado. Os que tinham escravos, ou agregados, puderam erguer suas casas; já os miseráveis “por ali ficaram, agregando-se uns aos outros”.




História da Vida Privada no Brasil 1 : cotidiano e vida privada na América Portuguesa / organizada por Laura de Mello e Sousa. - São Paulo: Companhia das Letras, 1997
Ilustração de Almeida Junior: Brasil Revisitado : Palavras e imagens / Carlos Guilherme Mota, Adriana Lopez. - São Paulo: Ed. Rios, 1989


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