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A outra, solteira e filha de um povoador, achava-se grávida sem que a família soubesse; não podendo mais sofrer os “ardores do parto”, e sem condições de retirar-se, teve que expor sua intimidade, parindo “publicamente no meio e à vista de tanto povo”. Passado poucos dias, manifestou-se entre os povoadores uma diarréia generalizada, então vulgarmente conhecida por corrução. Mais uma vez, violou-se o caráter privado de atos íntimos, os doentes tendo de fazer suas necessidades corporais onde fosse possível, uns tentando se esconder nos matos, outros, desfalecidos e sem poder se movimentar, tendo de ser carregados em redes ou removidos pelos sãos. Em seguida, sobreveio uma tempestade, sendo necessário embicar as embarcações no barranco e prendê-las com cordas de ferro aos troncos e às raízes das árvores das margens; as rezas e ladainhas não impediram que caíssem dois raios. Passada a noite dos horrores, amanheceu morta uma criança, dando-lhe sepultura no mato. Decidiu-se então que era melhor saltar em terra, cada família fazendo uma fogueira para se aquentar e cozinhar comida – como que tentando refazer, após tanta exposição pública de dores, vergonhas e doenças, a privacidade esfrangalgada. Quando os que saíam atrás de onça voltavam bem aquinhoados, os animais eram repartidos entre os povoadores; primeiro se serviam os doentes e os mais necessitados, e “cada um por sua parte, uns assando, outros cozendo, cada um cuidava da sua comida”. Mas bastou uma praga de carrapatinhos para que todos tivessem que ficar nus; o máximo que o pudor conseguiu foi dividirem-se os gêneros: de um lado, os homens se esfregavam com o popular caldo de tabaco de fumo ou bolas de cera da terra; do outro, “as mulheres lá se remediavam umas com as outras, e todos conforme podiam, e permitia a ocasião. Mas se por um lado o
convívio imposto pela viagem tolhia a intimidade das famílias e dos
indivíduos, o isolamento total podia, em certas circunstâncias, pôr
a vida em risco. Numa tarde, quando preparava o pouso na barra de
Piracicaba, perdeu-se um dos homens que havia saído para caçar. Era
um dos trinta soldados pagos que acompanhavam os povoadores; pelo
mato e pelo rio seguiram destacamentos atirando, no intuito de
orientar o perdido. Já noite, às oito horas, ouviram gritos do
infeliz, e deram com ele trepado numa árvore, “sem saber em que
parte estava, e disposto a ficar e morrer naquele sertão”. Contou
que lá subira acossado por um bando de porcos-do-mato, perseguidos,
por sua vez, por uma onça de “extraordinária grandeza”; os
companheiros resgataram-no da incômoda pousada. Outro episódio
curioso envolveu uma família, ansiosa, talvez, por buscar certa
intimidade dentro do convívio promíscuo da expedição: às dez
horas da noite, soltou-se rio abaixo uma embarcação em que dormiam
uma mulher, seu marido e dois filhos; acordaram à mercê da
correnteza, e “sem governo algum”, pondo-se a gritar pedindo
socorro aos companheiros. Da margem do rio, uma sentinela viu passar
o barco desgarrado, alertando, aos brados, os homens de um batelão,
que, nus, conseguiram reconduzir os quase-náufragos ao pouso.
O Tietê, de navegação acidentada, era considerado um rio saudável. Já o Paraná – ou Grande, como então se dizia -, quase sem cachoeiras, era sujeito a ventanias, a redemoinhos e sorvedouros fortíssimos e, principalmente, tinha fama de pestilento e doentio. Por
fim, passados dois
meses, chegou-se à praça do Iguatemi. A fortificação heptogonal,
no estilo consagrado por Vauban na França, achava-se inacabada e não
dava defesa alguma... A Igreja, desprovida de qualquer ornamento,
fora fabricada com parede de mão, e o telhado era de casca de
palmito. As casas, construídas da mesma forma, tinham o teto de
capim. Havia duas fontes boas de água. A guarnição compunha-se de
um capitão-mor regente, um capitão de infantaria vindo do Rio para,
como engenheiro, fortificar a praça, três companhias de paisanos
pedestres e seus oficiais competentes, totalizando cerca de trezentos
homens. Achava-se nua, morta de fome e sem comunicação com parte
alguma. |
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