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O Misto

O Misto
O Misto - Ilustração de Percy Lau
JOSÉ VERÍSSIMO DA COSTA PEREIRA em seus estudos sobre o Nordeste brasileiro frisou bem a complexidade e variedade daquele meio natural rico em soluções originais. Embora antiga área de povoamento, não ganhou como o Sul, alento para o desenvolvimento industrial. Seus povoados, vilas e cidades guardam as reminiscências dos ciclos econômicos que imperaram e lhe deram a roupagem urbana que ainda vestem. Hoje muitas dessas cidades experimentam decadência, vegetando simplesmente, à espera de um novo surto que reviverá a glória dos tempos idos. Permanecem longe da circulação dos eixos da economia atual, fixas na sua marginalidade. Mas, vivem! O dia de feira que normalmente se sucede é um novo alento, um dia de festa quando toda a circunvizinhança lhe volta atenção. Tudo se agita, o "comércio" exulta, a vida volta. Mesmo quando isoladas, distantes das rodovias de maior importância, mantêm-se ligadas por uma original forma de transporte e comunicação: o "misto".

Por "gênese" é um caminhão com dupla finalidade: transporta carga e passageiros. A cabine ou "boleia" é modificada, dando lugar a três ou quatro filas de bancos, cada uma recebendo cinco Ou seis passageiros. Esta improvisação ocupa metade do comprimento do veículo. O restante da carroçaria recebe a carga. Sua importância é maior do que se supõe à primeira vista. Partindo de uma localidade que convenciona ser sede das atividades, faz a "linha" uma ou duas vezes por semana à capital do estado ou centro regional, distantes muitas vezes mais de quarenta léguas. Uma tabuleta de madeira, pintada a capricho, indica, do alto do para-brisas, o destino: Misto Orós-Icó ou tantos outros: Jaguaribe-Ruças, Floriano-Oeiras-Picos, Jucás-Iguatu, Moçoró-Açu, etc. O motorista é figura de relevo, importante, popular e respeitado pelo seu grande valor "social". Por onde passa todos lhe conhecem, acenam, cumprimentam. Traz notícias, recados, cartas, bilhetes, volumes, etc. ... Basta pedir - seu João, me faz o favor de entregar no Croatá, pra Maria do Socorro ... - é uma carta de amor, escrita em letras trêmulas e disformes que o saudoso "cassaco" pede que entregue à sua namorada. Ele está trabalhando, já há tempo, na estrada que o DNOCS está abrindo.

Não tem hora certa para partir, não há pressa. É de manhã cedo ou à tarde, depois da feira. Quando o carro está cheio de gente e de trastes, toca a buzina de ar comprimido, prolongada e insistente. Mas, não vai sair não. É Só para avisar. Não há perigo, ninguém perde o "horário". Depois buzina outra vez, mas agora vai partir. Já com o motor funcionando, a 'buzina e lentamente começa o percurso. Ainda alguém vem correndo, ele para, os passageiros não demonstram a menor reclamação. É uma carta ou um recado ...

Já na estrada desenvolve velocidade, deixando atrás de si a poeira vermelha.
Os passantes já se acostumaram, trazem uma toalha ou lenço ao pescoço e cobrem o rosto ante o pó que são saudados. Todos os lugares têm um nome com o qual são conhecidos ou referidos: Alto do Sereno, Flor do Campo, Palestina, Rio dos Montões, Riacho da Paciência, etc. O motorista é solícito ao forasteiro curioso, procura tornar-se útil fornecendo informações. No percurso vai apanhando passageiros, que postados à beira da estrada, com seus trastes, nem fazem sinal de parada. Já se sabe, pela atitude ou pelo trajar. Escolhem calmamente um lugar, depois de ter cumprimentado os passageiros e ajeitado a bagagem. Esta é constituída quase sempre de sacos brancos (tipo de farinha). Quando num mesmo saco transporta vários cereais usa de um expediente curioso: no fundo coloca arroz, dando um nó logo a seguir, despeja milho e novamente outro nó e finalmente o feijão, já na boca do saco, quando dá o ultimo nó. Se vão para a feira levam para vender coisas da terra; na volta trazem querosene, cigarros, bebida, ferragens, etc. Outros viajam a negócios às vezes os mais curiosos. Um tipo inesquecível que tivemos por companhia foi o João das Latas (assim o chamávamos). Creio que vinha do Bacabal, no Maranhão e ia para o Crato, no Ceará. Seis sacos de latas vazias de marmelada, já usadas, constituíam sua bagagem. Como tinha negócios a fazer no Ceará, juntar as latas para vendê-las e assim "salvaria" os gastos da viagem ...

Atuando em um âmbito regional bem delimitado, o "misto" é o virtual substituto das tropas de burro, em processo de franca extinção. O adensamento da rede de rodovias municipais se inclui um novo elemento modificando condições antigas. As tropas de burro possuíam um raio de ação bem mais restrito: cinco a seis léguas por jornada. Esta seria a atuação máxima das feiras. Os gêneros perecíveis impunham, outrossim, idênticas limitações. Ao ambulante tropeiro também reduzido era o número de feiras que poderia frequentar, no decurso de uma semana.

O misto, caminhão adaptado às contingências nordestinas, ampliou o raio de ação das feiras, maior penetração e dinamismo do comércio ambulante. O artesanato industrial do Crato se faz presente nas mais distantes cidades: espingardas (tico trabuco), "peixeiras", chocalhos de cobre, para a criação, ferragens, ourivesaria, etc. De igual forma, as casas grossistas de Campina Grande fazem chegar ao alto sertão as bugigangas de plástico e produtos de beleza, já há tempos presentes nas modestas moradas do sertanejo.

Inegavelmente ao misto e ao caminhão devemos atribuir a reformulação das áreas de atuação das muitas cidades do Nordeste. Cidades tiveram aceleração no seu processo evolutivo, ampliando sua zona de influência e modificando os quadros geoeconômicos.


Fonte : O Misto / Bernardo Issler in Tipos e Aspectos do Brasil. - Departamento de Documentação e Divulgação Geográfica e Cartográfica / Instituto Brasileiro de Geografia / Fundação IBGE. - Rio de Janeiro, 1970


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