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Mais tarde, com a destruição das bases da vida social indígena, a negação de todos os seus valores, o despojo, o cativeiro, muitíssimos indígenas
deitavam em suas redes e se deixavam morrer,
como só eles têm o poder o fazer. Morriam de tristeza, certos
de que todo o futuro possível seria a negação mais
horrível do passado, uma vida indigna de ser vivida por gente
verdadeira. Os
povos que ainda o puderam fazer, fugiram mata adentro, horrorizados com
o destino que lhes era oferecido no convívio dos brancos, seja na
cristandade missionária, seja na pecaminosidade colonial. Muitos
deles levando nos corpos contaminados as enfermidades que iriam
dizimando
a eles e aos povos indenes de que se aproximassem. Esse foi o primeiro efeito do encontro fatal que aqui se dera. Ao longo das praias brasileiras de 1500, se defrontaram, pasmos de se verem uns aos outros tal qual eram, a selvageria e a civilização. Suas concepções, não só diferentes mas opostas, do mundo, da vida, da morte, do amor, se chocaram cruamente. Os navegantes, barbudos, hirsutos, fedentos de meses de navegação oceânica, escalavrados de feridas do escorbuto, olhavam, em espanto, o que parecia ser a inocência e a beleza encarnadas. Os indígenas, vestidos da nudez emplumada, esplêndidos de vigor e de beleza, tapando as ventas contra a pestilência, viam, ainda mais pasmos, aqueles seres saídos do mar. Aquele desencontro de gente indígena que enchia as praias, encantada de ver as velas enfunadas, e que era vista com fascínio pelos barbudos navegantes recém-chegados, era, também, o enfrentamento biótico mortal da higidez e da morbidade. A indiada não conhecia doenças, além de coceira e desvanecimento por perda momentânea da alma. A branquidade trazia da cárie dental à bexiga, à coqueluche, à tuberculose e o sarampo. Desencadeia-se, ali, desde a primeira hora, uma guerra biológica implacável. De um lado, povos peneirados, nos séculos e milênios, por pestes a que sobreviveram e para as quais desenvolveram resistência. Do outro lado, povos indenes, indefesos, que começavam a morrer aos magotes. Assim é que a civilização se impõe, primeiro, como uma epidemia de pestes mortais. Depois, pela dizimação através de guerras de extermínio e da escravidão. Entretanto, esses eram tão-só os passos iniciais de uma escalada do calvário das dores inenarráveis do extermínio genocida e etnocida. Para os indígenas, a vida era uma tranqüila fruição da existência, num mundo dadivoso e numa sociedade solidária. Claro que tinham suas lutas, suas guerras. Mas todas concatenadas, como prélios, em que se exerciam, valentes. Um guerreiro lutava, bravo, para fazer prisioneiros, pela glória de alcançar um novo nome e uma nova marca tatuada cativando inimigos. Também servia para ofertá-lo numa festança em que centenas de pessoas o comeriam convertido em paçoca, num ato solene de comunhão, para absorver sua valentia, que nos seus corpos continuaria viva. Uma mulher tecia uma rede ou trançava um cesto com a perfeição de que era capaz, pelo gosto de expressar-se em sua obra, como fruto maduro de sua ingente vontade de beleza. Jovens, adornados de plumas sobre seus corpos escarlates de urucu, ou verde-azulados de jenipapo, engalfinhavam-se em lutas desportivas de corpo a corpo, em que punham a energia de batalhas na guerra para viver seu vigor e sua alegria. Para os recém-chegados, muito ao contrário, a vida era uma tarefa, uma sofrida obrigação, que a todos condenava ao trabalho e tudo subordinava ao lucro. Envoltos em panos, calçados de botas e enchapelados, punham nessas peças seu luxo e vaidade, apesar de mais vezes as exibirem sujas e molambentas, do que pulcras e belas. Armados de chuço de ferro e de arcabuzes tonitroantes, eles se sabiam e se sentiam a flor da criação. Seu desejo, obsessivo, era multiplicar-se nos ventres das indígenas e pôr suas pernas e braços a seu serviço, para plantar e colher suas roças, para caçar e pescar o que comiam. Os homens serviam principalmente para tombar e juntar paus-de-tinta ou para produzir outra mercadoria para seu lucro e bem-estar. Esses indígenas cativos, condenados à tristeza
mais vil, eram também
os provedores de suas alegrias, sobretudo as mulheres, de sexo bom de
fornicar,
de braço bom de trabalhar, de ventre fecundo para prenhar. Nada
que os indígenas tinham ou faziam foi visto com qualquer
apreço,
senão eles próprios, como objeto diverso de gozo e como fazedores
do que não entendiam, produtores do que não consumiam.
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