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O
mito da lagarta kurupêakê acima
relatado por Aimoré, atendendo ao pedido da etnóloga para que
explicasse o porquê dos Wayana se pintarem e decorarem seus artefatos,
refere-se à obtenção tecnológica da pintura corporal de jenipapo e a
três tipos de peles pintadas, representativas de três domínios do
universo indígena, que enfatizam o poder aglutinante da decoração
enquanto instrumento de visualização das representações Wayana.
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A
primeira referência é sobre a pintura do fruto do jenipapo, um vegetal
não-cultivado e que, portanto, se conecta com a natureza; segue-se a do
homem/lagarta, cuja dualidade e poder de transformação o caracterizam
como um ente sobrenatural, referindo-se assim a este âmbito; enfim, a
narrativa faz alusão aos seres humanos, desejosos de se adornarem. A
diferença crucial a ser ressaltada é que os primeiros possuem peles que
são originalmente pintadas, ao passo que as dos seres humanos não o
são. Entretanto, por meio dos amores ilícitos de uma mulher e um
sobrenatural, a “pintura corporal” do jenipapo e da lagarta lhes é
transmitida. Essa apropriação é, contudo, restrita ao uso e não à
posse, como enfatizam os Wayana: “As pinturas são dos ipó
‘sobrenaturais’, nós só as usamos”.
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Na
decoração, os Wayana não empregam unicamente as pinturas de lagarta,
mas igualmente a de outros seres sobrenaturais, sobretudo as de okoimã “cobra-grande”.
A obtenção das “pinturas da cobra grande” é relatada em outro mito. Resumidamente, essa narrativa refere-se a uma imensa serpente, denominada tuluperê. Habitando o igarapé Axiki, afluente do rio Paru do Leste e um divisor territorial dos Wayana e Apalai, impedia que estes povos estabelecessem relações pacíficas, pois virava as canoas que se aproximavam, devorando os ocupantes. |
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Os Wayana, com o auxílio de um xamã,
conseguiram derrotar tuluperê e,
durante o combate, observaram seus flancos, adornados com pinturas
negras e vermelhas. Os Apalai, chegando posteriormente, encontraram-no
morto, e assim só viram um de seus lados, de onde copiaram as pinturas
(van Velthem, 1984)
Esse relato faz referência à obtenção de motivos ornamentais copiados da “pintura corporal” de tuluperê, assim como estabelece diferenciações de conhecimento entre os Wayana e os Apalai, conectadas a dois aspectos do ofício de artesão: o repertório decorativo e a habilidade de confecção. Assim, segundo o mito, os Wayana obtiveram um amplo elenco, pois viram os dois lados de tuluperê durante a luta, e os Apalai seriam mais hábeis, porque dispuseram de mais tempo para observar os motivos, uma vez que o ser sobrenatural jazia morto. A concepção de “decoração corporal” não representa uma peculiaridade restrita aos sobrenaturais e aos humanos, mas refere-se a outros componentes do universo indígena – artefatos, animais, vegetais, espíritos, entidades míticas -, conformando um recurso visual que lhes propicia especificidade e identidade. Nesse sentido, a função da “decoração” é a de um veículo capaz de aguçar a percepção classificatória para a conveniente ordenação do universo. (Bezerra de Menezes, 1983: 7). Essa ordenação possui como objeto primordial o ser humano, o único capaz de mudar sua decoração, a qual se adapta às mudanças temporais básicas de sua vida social: o cotidiano e o ritual. Os demais seres do universo estão condenados a uma única e perpétua ornamentação, referida sob o termo timiriké “provido de sinais”. Cada um desses domínios é representado paradigmaticamente por um ente cuja pintura corporal identifica a si e a sua categoria. Assim, o pontilhado representa o couro malhado das onças e igualmente o domínio da natureza; os triângulos refere-se as borboletas e ao mundo dos espíritos; o listrado representa a “cobra-grande”, enquanto representação do arco-íris e o reino do sobrenatural. O pontilhado, os triângulos e o listrado permitem visualizar e memorizar o mapa cosmológico e conferem requinte estético à ornamentação, visto que constituem as unidades mínimas de significação (müller, 1990: 243) e que preenchem os campos vazados da decoração dos artefatos. O “liso”, uma pintura à base de urucum que recobre o corpo dos pés à cabeça, caracteriza a “pele social” (Turner, 1980) dos humanos e representa a própria humanidade. Sob certo aspecto, pode ser interpretada como uma “obra em aberto”, pois permite ao homem wayana a disposição em seu corpo dos demais elementos de seu universo. Enquanto manifestação social, não-originária embora original, a decoração dos Wayana como um todo recebe o designativo anon “tinta”, “pintura”. |
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Os pigmentos, de origem vegetal e mineral, compõem uma paleta variada: vermelho-vivo, vermelho-castanho, ocre, branco, cinza-azulado e negro. Dentre esses, sobressaem esteticamente o vermelho e o negro, por serem justamente as cores dos motivos de tuluperê ou de kurupeakê, os quais se busca reproduzir nos mínimos detalhes. Essas pinturas, que correspondem aos individualizados padrões decorativos, são referidas pelo termo mirikut “motivo, desenho, pinta”. |
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Os mirikut acham-se agrupados em quatro repertórios: Tuluperê
imirikut (motivos
da cobra-grande) é o mais vasto e complexo dos repertórios. Sua
temática inclui elementos da cultura Wayana, da flora e da fauna da
região, seres imaginários. Devem ser compreendidos como representações
multidimensionais, pois, em seu registro mais comum, cada motivo
refere-se concomitantemente a um determinado elemento do ecossistema
amazônico, que nomeia o motivo, seu epônimo sobrenatural e a própria
“cobra-grande”, visto que cada uma de suas pinturas corporais a
identifica e representa. Esse é o caso do motivo meri “quatipuru”
que representa este roedor, um ente sobrenatural com o mesmo aspecto,
porém de grandes dimensões (merimã), que,
igualmente, remete à “cobra-grande”. Iorok imirikut “motivos dos espíritos”, apesar da associação semântica, não são considerados, propriamente como uma decoração. Essa iconografia é antes uma vereda, uma forma de comunicação entre o aprendiz e os espíritos que lhe proporcionarão conhecimentos e a própria condição de xamã. De aspecto punctiforme, o repertório é do conhecimento exclusivo do mestre, que reproduz, em uma coroa de palha, os animais que são iorok “espírito”, como certos ofídios, aves, mamíferos e borboletas. Urinuntop imirikut “motivos de guerra”, compreendem um repertório aplicado unicamente às bordunas e ao corpo humano, no contexto guerreiro. Nas clavas são incisos e na epiderme são pintados ou escarificados. Entre os motivos de guerra se sobressaem kaikui “onça pintada” e piá “gavião real”, seres que simbolicamente representam os guerreiros. A função desses motivos é múltipla, ou seja: fornecer identificação étnica durante as contendas, propiciar a incorporação, no guerreiro, de impulsos homicidas e aterrorizar os inimigos. Maruana imirikut literalmente “motivos da roda de teto” é dotado de complexo simbolismo. Esse elenco refere-se não a um artefato, mas sim às “pinturas corporais” de uma arraia sobrenatural, denominada maruana. Técnicas Decorativas Os meios formais de materialização dos ornatos ou as técnicas decorativas são múltiplas. O referencial que as nomeia é buscado na própria modificação do corpo humano, pois, como visto, é fundamental sua atuação enquanto matriz organizadora e as incisões da pele representam as principais intervenções sociais que modificam a estrutura original do corpo humano, mudando seu estado de “nudez” para “vestido”, a pintura, o entalhe e a amarração transformam o artefato de “inacabado” em “acabado”. |
O
corpo humano deve ser pintado uniformemente com tinta vermelha à base
de sementes de urucum para indicar sua complexa socialização. Essa
pintura é designada por tonophé, o mesmo termo que
nomeia a técnica “pintura”.
A técnica da pintura é dotada de complexa significação, tanto do ponto de vista da percepção visual como dos objetivos funcionais, sendo, portanto, privilegiada esteticamente. São consideradas como “pintura” tanto a ornamentação de vasilhas de cerâmica com o auxílio de pigmentos minerais e pincéis, quanto a decoração de cabaças ainda verdes, executada com um tição incandescente. Nos artefatos, a aplicação dessa técnica requer pigmentos e mordentes de origem mineral e vegetal. As tintas vegetais têm como fixadores a seiva de maçaranduba ou do ingá-do-mato e são confeccionadas a partir do urucum, que fornece o tom vermelho, do jenipapo e da fuligem, que fornecem a cor negra. São empregadas na aplicação de motivos no corpo humano, na cestaria, nas máscaras, nas flechas. Os pigmentos de origem mineral, que compreendem uma paleta onde sobressaem o branco, o ocre, o cinza-azulado e o vermelho-castanho, adornam a cerâmica, as rodas de teto, os bancos, as bordunas. |
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O
instrumental empregado compreende dedos, pincéis de cabelo humano,
outros de varetas e chumaço de algodão, nervuras de folhas de palmeira,
facas e canivetes industriais. A pintura é uma técnica exercida pelos
dois sexos, variando os suportes e os instrumentos. As mulheres pintam
com a ponta dos dedos (uma subtécnica de nome específico) e com os
demais pincéis. Sua arte se evidencia sobretudo na pintura corporal, na
cerâmica e com outros vasilhames domésticos. Os homens decoram as
demais categorias, empregando instrumental mais restritos.
O corpo humano é retalhado com elementos cortantes como o buril de dentes de cutiaia em diferentes fases do ritual de iniciação, como um meio profilático que impedirá moléstias atribuídas aos efeitos do ritual. Em outros momentos de transição como luto, puberdade e nascimento, são realizadas escarificações com os mesmos objetivos. Nos preparativos de guerra, eram esfregadas soluções medicinais sobre os cortes, visando veicular atributos desejáveis como a valentia. As escarificações são designadas pelo termo pahié, o mesmo que nomeia a técnica “entalhe”. Uma terceira modificação do corpo humano é produzida pelo envolvimento dos punhos, tornozelos, cintura e tronco com numerosos fios de miçangas. Essa decoração, pelo volume, comprimento e associação cromática, objetiva a transmissão de informes sobre o sexo, a idade, a situação social (cotidiana ou ritual) de seus portadores. Esse envolvimento é referido como tipumuhé “amarrado” e nomeia igualmente a técnica “amarração”. |
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