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Pintura Asurini do Trocará
Pintura Ausrini do Xingu
Pintura Wayana
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Pintura Xerente
Plumária

Pintura Corporal Xerente

Do texto de Aracy Lopes da Silva e Agenor T. P. Farias

Os Xerente - autodenominados Acuen e formando com os Xavante do Mato Grosso o ramo central das sociedades de língua Jê - ocupam hoje duas áreas territoriais de Tocantins, no norte de Tocantins. A população atual (1999) é cerca de 1.800 pessoas. Todos falam a língua Xerente, sendo as crianças (de até 4 ou 5 anos) estritamente monolíngues. Entre os jovens e adultos, há grande predomínio do português, ainda que, entre si, usem preferencialmente a língua materna.

Os Xerente chamam todos os grupos sociais com identidade própria e que articulam em contextos
específicos de “partidos”, no sentido de uma totalidade (conjunto dos membros de uma aldeia)
partida, dividida, em subgrupos. Assim, são “partidos” o que para a antropologia são clãs, classes
de idade, metades rituais etc. E os “partidos” são identificados pela pintura corporal que seus
membros ostentam.

Os Xerente não pintam seus corpos cotidianamente. Como os Xavante, e diferentemente dos Kayapó, reservam a pintura corporal para situações  cerimoniais.
Pintura Corporal Xerente
Pintura clânica. Os traços grossos e a "gola" constituem uma "moldura" que abriga o distintivo da metade a que pertence no grupo  social.
Neste caso, trata-se de um noivo wahiré e o traço vertical, muito fino, aplicado com talinho de folha de buriti (= wahiré), é o que o identifica.
Aldeia do Posto indígena Xerente, 1984
Nessas ocasiões, os padrões utilizados revelam a qual grupo social cada indivíduo pertence, segundo critérios variados: há as pinturas clânicas, indicativas dos "partidos"; há aquelas relacionadas às classes de idade, os "partidos de festa"; há as usadas pelas metades rituais, os "partidos de tora". Papéis sociais diferenciados têm, como marca distintiva, padrões próprios de pintura corporal. É o caso dos encarregados do corte e ornamentação das toras de buriti para as
corridas rituais, os danohuikwá. O mesmo acontece nas cerimônias de cura ou outras, onde sua atuação especializada é requerida. Trazem no corpo pinturas exclusivas: cada qual se apresenta como a representação do espírito da natureza (animal ou outro) que o protege e lhe transmite os ensinamentos mágicos que lhe dão o poder da cura e da premonição.

Fora de situações cerimoniais, no dia-a-dia de uma aldeia Xerente, só crianças podem eventualmente estar pintadas. Há dois padrões básicos: o da onça e do tamanduá, e se aplicam, respectivamente, a crianças recém-nascidas e crianças de 2 e 3 anos, de ambos os sexos. Depois dessa idade, passam a usar padrões clânicos, como os adultos. As crianças são geralmente pintadas por suas mães e as tinturas são as mesmas empregadas sobre o corpo dos adultos: urucum e carvão.

Em três situações cerimoniais distintas há a prática da pintura corporal entre os Xerente. São elas: a nominação masculina, a corrida de toras e o casamento.
Motivo clânico Xerente
Padrão da pintura corporal Xerente em carvão sobre papel.
Uso de espátula de bambu e carimbos de buriti, para os motivos do clã Isake / Krozaké , da metade wahiré.
(Trabalho de Juliana Stukrépré, Aldeia do Posto indígena Xerente, 1984)
As técnicas e os padrões da pintura corporal

Preto, vermelho e branco são as cores da ornamentação corporal básica entre os Xerente. O preto é conseguido com o carvão pulverizado, misturado ao "pau-de-leite", (aremsú) previamente colocado sobre folha lisa como a da bananeira, por exemplo. O pintor, dasisdanãrkwá, apóia a folha sobre a palma da mão e, ali, mistura as tintas. O corpo, untado com óleo de babaçu, recebe as grandes listras e os detalhes em preto que lhe são impostos com a ajuda de uma espátula de taquara, de carimbos esculpidos em pedaços de miolo da tora de buriti ou feitos de pequenas pontas de cabaça ou de um talo miúdo da folha do buriti, conforme o padrão desejado.

O vermelho, geralmente por ser apenas espalmado sobre o corpo - como fundo sobre o qual é aplicado o desenho clânico - ou usado apenas em detalhes - pequenos traços na barriga e sobre o umbigo ou ao longo das costas, sobre a coluna -, é obtido diretamente das sementes do urucum. aramente os Xerente usam a massa consistente obtida pela fervura prolongada das sementes.
Motivo clânico Xerente
Padrão da pintura corporal Xerente em carvão sobre papel.
Uso de espátula de bambu e ponta de cabaça pequena, para os motivos dos circulos, do clã Kuzö, da metade doí.
(Trabalho de Juliana Stukrépré, Aldeia do Posto indígena Xerente, 1984)
A tintura, obtida diretamente das sementes cruas, é misturada com nrõso (coquinho de babaçu), mastigado como meio para a extração do óleo. O branco, quando há, é sobreposto à pintura propriamente dita: trata-se de detalhes executados com penugem de krerê (periquito) ou em algodão.

Há dois motivos básicos na pintura clânica dos Acuen-Xerente: o traço (wahirê) e o círculo (doí). Esses motivos são hoje, como sempre, uma das referências básicas, aos olhos dos próprios Xerente, para a identificação de suas metades patrilineares exogâmicas tradicionais. A palavra que descreve o motivo serve, atualmente, de designação genérica para o conjunto de clãs cujos padrões específicos de pintura corporal têm, por base, o motivo em questão. Assim, wahirê, em seu uso genérico, designa todos os clãs que têm no traço o elemento de sua pintura específica; doí, todos os clãs que têm no círculo seu motivo característico.

A especificidade de cada clã é expressa por uma variação exclusiva no uso do motivo básico, formando padrões distintivos. A exclusividade se obtém por variação no tamanho do motivo ou no lugar do corpo onde é aplicado e, no caso do traço, se é aplicado horizontalmente e em série ou verticalmente e como traço único. As linhagens não são distinguidas no plano da pintura corporal. Tudo leva a crer que, embora os termos tradicionalmente usados na denominação das
metades, Sdakrã e Sip’tato tenham caído quase completamente em desuso, a oposição entre elas permanece, em nível conceitual. O uso distintivo dos motivos da pintura corporal é um outro campo - em relação à terminologia de parentesco e às facções políticas - de expressão dessa oposição conceitual.

Esses padrões clânicos são aplicados sobre o corpo nos espaços vazios deixados por alguns elementos fixos da pintura corporal Xerente: a "gola", a "moldura", as "braçadeiras" e a pintura da parte inferior das pernas (entre o joelho e o tornozelo). Esses elementos fixos são todos feitos com carvão e aplicados ao corpo com espátula de taquara.
Corrida de Tora
Corrida feminina de toras, por ocasião da festa de nominação na aldeia Funil. Observa-se ao fundo, o homem responsável pela tora de buriti, Piköhuikwa.
Foto de Agenor F. Farias
A pintura das metades rituais

Para a realização das corridas com grandes toras de buriti (isitro), os Xerente dividem-se em duas metades rituais, os "partidos de tora", transformados a partir de pares de classes de idade. Cada uma dessas metades encarrega-se de transportar uma tora esculpida e ornamentada. Essas toras grandes, de cerca de dois metros de comprimento, merecem atenção e cuidados especiais por parte dos pajés, para não serem molestadas por espíritos da mata. Cada uma das toras é pintada com pau de leite, carvão e urucum e ornada com plumagens de gavião fumaça, nos motivos ao belo.

Os membros de cada metade têm seus corpos pintados e ornamentados segundo o mesmo padrão que suas toras respectivas. Nesse contexto, as metades rituais são designadas por Steromkwá e Htamhã.
Na Festa de nominação os homens adultos  pintam o corpo, segundo os padrões clânicos, untam os cabelos com óleo de coco.
Na cerimônia de casamento a pintura corporal é indicativa da filiação dos participantes a grupos sociais de ascendência paterna (metades e clãs).

Há incertezas, ambiguidades e indefinições nos depoimentos dos Xerente, há imprecisões e contradições nas afirmações individuais isoladas. Não se trata, a nosso ver, de identificar nisso a “desorganização”, o “colapso” ou o sinal de uma desarticulação irreparável. Trata-se de uma sociedade que, apesar da antiguidade (pelo menos 250 anos) e da intensidade de seu contato com a população regional, manteve-se como entidade linguística, cultural e etnicamente diferenciada.


Fonte : Pintura corporal e sociedade: os “partidos” Xerente /  Aracy Lopes da Silva e Agenor T. P. Farias in Grafismo Indígena: Estudos de Antropologia Estética / Lux Vidal (organizadora), 2ª ed. – São Paulo: Studio Nobel: FAPESP: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.

Aracy Lopes da Silva - Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, onde leciona desde 1974, e pesquisadora na Universidade de Harvard (1988- 89). Ex-presidente da Comissão Pró-Índio de São Paulo, da qual participa desde sua fundação. Fez pesquisas de campo entre os Xavante e os Xerente do Brasil Central e os Pataxó  Hãhãhãi do sul da Bahia. Suas publicações incluem estudos sobre estrutura social e mitologia, educação escolar indígena e trabalhos de divulgação científica sobre sociedades indígenas e sua problemática atual, destinados a crianças jovens e não-índios e seus professores.

Agenor T. P. Farias - Em 1980 graduou-se em Ciências Sociais na Unicamp. É atualmente professor na PUC Campinas e doutorando em Antropologia pela FFLCH/ USP. O primeiro contato com populações indígenas deu-se em 1974 no Mato Grosso. Viveu na aldeia Kayabi do Rio dos Peixes. Sua dissertação de mestra do em Antropologia Social, defendida em 1990, foi dedicada ao estudo do ritual e da sociedade Xerente, grupo lê do Estado do Tocantins. Atualmente dedica-se a produzir uma etnografia entre os Xerente.


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