|
|
|
O
regulamento baixado com a lei de criação do Serviço, confirmado, com
pequenas modificações, pelo Decreto n.º 9.214, de 15 de dezembro de
1911, fixou as linhas mestras da política indigenista brasileira. Outro princípio de importância fundamental era a proteção ao indígena em seu próprio território. Punha-se cobro à velha prática dos descimentos, que desde os tempos coloniais vinham deslocando tribos de seu habitat para a vida famélica dos vilarejos civilizados. Esta técnica de “civilização do indígena” fora utilizada, desde sempre, como a principal arma do arsenal de desorganização da vida tribal. Uma vez fora do ambiente em que se tinha criado e onde era eficiente seu equipamento de luta pela subsistência, o indígena dificilmente poderia manter a vida comunal e só lhe restava fugir ou submeter-se aos seus dominadores. Pelo regimento ficava também proibido o desmembramento da família indígena, pela separação de pais e filhos, sob pretexto de educação ou de catequese. Era outra prática secular que, embora responsável por fracassos clamorosos e até por levantes sangrentos, continuava em vigor.Acreditando só poder salvar os indígenas pela conquista das novas gerações e com absoluto menosprezo pelo que isto representava para os pais indígenas, os filhos lhes eram tomados e conduzidos às escolas missionárias. O pior é que o sistema jamais dera os resultados que dele se esperavam. Na realidade, só privava o jovem indígena da oportunidade de iniciar-se nas técnicas e tradições tribais, as únicas realmente operativas em sua vida de adulto... Na missão o indígena era preparado para uma vida de civilizado que não teria oportunidade de viver. Quando voltava à aldeia, via-se lançado à marginalidade, nem era um indígena eficazmente motivado pelos valores tribais e capaz de desempenhar os papéis que sua comunidade esperava de um adulto, nem bem era civilizado, por força do que ainda conservava de indígena, e, sobretudo, pelo sucessivo fracasso em todas as tentativas de passar por civilizado entre civilizados. Malgrado as qualificações educacionais e técnicas que adquirisse na escola, continuariam a considerá-lo como um indígena e a tratá-lo com todo o peso do preconceito que separa indígenas de sertanejos. Toda a ação assistencial deveria, doravante, orientar-se para a comunidade como um todo, no esforço de levá-la a mais alto nível de vida, através da plena garantia possessória, de caráter coletivo e inalienável, das terras que ocupam, como condição básica para sua tranqüilidade e seu desenvolvimento; da introdução de novas e mais eficientes técnicas de produção e da defesa contra epidemias, especialmente aquelas adquiridas no contato com civilizados e que, sobre populações indenes, alcançam maior letalidade. Rondon não ficou na formulação dos princípios. Colocou-se à frente do Serviço de Proteção aos Índios, como seu diretor, a princípio, depois como orientador sempre vigilante. Graças à sua ação indigenista o SPI pacificou quase todos os grupos indígenas com que a sociedade brasileira deparou em sua expansão, sempre fiel aos métodos persuasórios. Dezenas de servidores do SPI, ideologicamente preparados e motivados pelo exemplo de Rondon, provaram, à custa de sua vida, que a diretiva Morrer, se preciso for, matar, nunca, não é mera frase. Outra
característica básica do programa de Rondon é a perspectiva
evolucionista em que foi vazado, que permitiu não só aquilatar a
importância funcional e a relatividade das instituições culturais, mas,
também, criar uma expectativa de desenvolvimento natural e progressivo
ao indígena, na base de sua própria cultura. “O Serviço não procura nem espera transformar o indígena, os seus hábitos, os seus costumes, a sua mentalidade, por uma série de discursos, ou de lições verbais de prescrições, proibições e conselhos; conta apenas melhorá-lo, proporcionando-lhe os meios, o exemplo e os incentivos indiretos para isso: melhorar os seus meios de trabalho, pela introdução de ferramentas; as roupas, pelo fornecimento de tecidos e dos meios de usar da arte de coser, à mão e à máquina; a preparação de seus alimentos, pela introdução do sal, gordura, dos utensílios de ferro, etc.; as suas habitações; os objetos de uso doméstico; enfim, melhorar tudo quanto ele tem e que constitui o fundo mesmo de toda a existência social. E de todo esse trabalho, resulta que o indígena e não um mísero ente sem classificação social possível, por ter perdido a civilização a que pertencia sem ter conseguido entrar naquela onde o queriam levar”. (1923: 25.) |
|
|
Para
aquilatar-se a importância desses princípios e o caráter pioneiro de
sua formulação, naquele Brasil de 1910, basta considerar que, em 1956,
a 39.ª Conferência Internacional do Trabalho, reunida em Genebra,
aprovou, como recomendação para orientar a política indigenista de
todos os países que têm populações indígenas, um documento inspirado,
em grande parte, na legislação brasileira, no qual esses mesmos
princípios são enunciados, como as normas básicas que devem disciplinar
todas as relações com os povos tribais.
Consideradas em seu contexto histórico, essas diretrizes positivistas eram o que se oferecia, então, de mais avançado. A etnologia, da qual se poderia esperar alguma orientação, tendo em vista a copiosa bibliografia de descrição de costumes exóticos que reunira, era ainda uma disciplina de museu, inteiramente alienada da realidade humana dos materiais com que lidava. A atitude do etnólogo, em geral, era da mais completa indiferença pelo destino dos povos que estudava. O indígena, olhado sobranceiramente das alturas da civilização européia, orgulhosa de si mesma, era visto como ser exótico, discrepante, cujas ações de fósseis vivos só interessavam enquanto pudessem lançar luz sobre o passado mais remoto da espécie humana. A
realização prática dessa política apresentava uma série de problemas, a
começar pelas dificuldades de acesso às regiões habitadas por grupos
indígenas, pela variedade de línguas e tradições culturais; pela
diversidade de ambiente e de condições de vida e, sobretudo, pelas
desconfianças que séculos de amargas experiências com civilizados
haviam deixado em cada grupo indígena. A esses obstáculos se juntaram
outros, ainda mais difíceis de vencer: os provenientes dos interesses
escusos que o SPI teria de contrariar, para garantir ao indígena a
posse das terras que lhe pertenciam e que haviam sido usurpadas; para
impedir sua escravização e para impor respeito à família indígena. Nos primeiros anos de atividade, ao Serviço de Proteção aos Índios foram facultadas todas elas. O Parlamento, pressionado pelo clamor geral em prol de medidas de amparo aos civilizados em luta contra os indígenas, votava prontamente as verbas solicitadas. A segunda condição também pode ser satisfeita, porque Rondon contava com a equipe que forjara durante a construção das linhas telegráficas, composta de oficiais de formação positivista, experimentados no trato com os indígenas e movidos do maior entusiasmo à causa indígena. Ao lado deles formaram, desde a primeira hora, alguns professores universitários, funcionários públicos, médicos, engenheiros e publicistas quase todos positivistas, que haviam liderado a campanha pela criação do Serviço. Desses saíram os primeiros dirigentes e os inspetores do Serviço de Indígenas. O que acaso lhes faltava, em compreensão do complexo problema com que lidavam, era compensado pela dedicação fervorosa que devotavam aos indígenas. O poder de autoridade não faltou, também, e vinha, quiçá, da única fonte realmente capaz de impor-se no interior – o exército. Constituídas, em sua maioria, por oficiais, as chefias do Serviço eram respeitadas como se o próprio exército andasse pelo interior nesta campanha de amparo ao indígena. Pouco
depois, começam a faltar, um após outro, todos aqueles requisitos
essenciais e o Serviço de Indígenas entrou na sua verdadeira história:
breves períodos de atividade intensiva, seguidos de longos períodos de
inoperosidade e quase estagnação. |
|
Fonte : Os Índios e a Civilização / Darcy Ribeiro. - São Paulo: Círculo do Livro S.A. s/data.
|
||
Deixe seu comentário: | Deixe seu comentário: | |
Correio eletrônico | ||
Livro de visitas |