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Funeral Bororo
As cerimônias funerárias dos Bororo representam um padrão específico de enterro secundário: os corpos dos mortos são inumados (enterrados) envoltos em esteiras para serem posteriormente exumados (desenterrados) para a lavagem e decoração dos ossos depois do que são colocados em cestos sepultados fora da aldeia.
O enterro secundário Bororo insere-se num conjunto complexo de outras práticas tais como danças, cantos, refeições comunitárias e destruição dos pertences dos mortos.
Cada morto é ritualmente representado por três sobreviventes, ou seja, um “representante” do finado, encarregado de dançar em sua homenagem, lavar e enfeitar os ossos do representado, e caçar um animal de desagravo, a fim de liberar do luto os parentes do seu morto; uma “mãe” ritual, parenta clânica próxima do finado que, juntamente com seu marido, o “pai” ritual, devem assumir pesadas obrigações cerimoniais (chorar, cantar, cortar-se o próprio corpo durante os funerais, devendo o último confeccionar a cabacinha funerária, carregada pelo “representante” durante as danças e as caçadas religiosas. Abatido e oferecido um animal de desagravo, de preferência um felídeo de grande porte, tal como uma onça-pintada, o “representante” receberá a recompensa de algum enfeite de penas e um nome, ambos pertencentes ao clã do finado, que poderá usar a seu bel-prazer. O beneficiado passa também a assumir diversas funções sociais do seu morto, entre os quais a obrigação vitalícia de cuidar do seu casal de “pais” rituais, enviando-lhes a carne ou o peixe que lhe tiver sido enviado pelas “almas” (termo que, no caso, designa o grupo de caçadores, representantes dos finados da aldeia) até o dia em que lhe permitam as forças.

Viseira
Esplendor plumário de um chefe clânico ao  realizar os funerais dos seus parentes.
As aldeias Bororo é formada por casas de palha, tradicionalmente dispostas em um círculo subdividido em duas metades (Ecerae e Tugarege) por um eixo leste-oeste, sobre o qual se acha erigida a casa central, centro de reuniões e cerimônias comunitárias.
Cada semicírculo e subdividido em quatro setores clânicos, correspondente, cada um, a um número variável de casas ou grupos domésticos.

Os alimentos preparados pela “mãe” ritual são levados para a choupana central por seu marido, o “pai” ritual, que, a portas fechadas, o oferece ao “representante” do seu finado. Visto as caçadas e pescarias das “almas” congregarem obrigatoriamente todos os “representantes” de finados presentes na aldeia, é possível avaliar a sua importância para a economia comunitária, principalmente pela vitaliciedade dos encargos assumidos. Instauram-se laços de solidariedade moral e econômica entre os casais de “pais” rituais e seus respectivos representantes. Estes últimos são designados de “filhos” pelo casal de “pais” rituais que, complementarmente, são designados de “mães” e “pais” pelos representantes. Portanto os funerais engendram, “famílias” rituais que, em nome dos mortos, se devem respeito e cuidados mútuos até o fim de suas respectivas vidas. Parentes rituais respeitam-se mais do que parentes comuns, não devendo brigar nunca e oferecer-se sempre os recursos materiais e espirituais mais nobres, de modo a gerar fortes focos de coesão social.

Sob o ponto de vista sociológico, a instituição da representação dos mortos tem como ponto de partida de que o “filho” ritual seja sempre escolhido dentre os melhores caçadores da outra metade à do finados. Assim, morrendo homens ou mulheres Ecerae, seus “representantes” devem pertencer à metade Tugarege. E, vice-versa, morrendo um Tugaregedo, deverá ser escolhido um Eceraedo. Deste modo, o “filho” ritual pertence à mesma metade do “pai” ritual, e “mãe” e “filho” rituais pertencem a metade diversas. Invertem-se assim as regras de descendência, bem como os padrões de comportamento recíproco entre os parentes, pois quem oferece o alimento ao “filho” ritual não é a “mãe”,  mas sim o “pai”; o “mãe” ritual permanece espacialmente afastada do seu “filho”, enquanto mães e filhos pequenos comuns nunca se afastam uns dos outros; a “mãe” ritual jorra o sangue, vertido por meio de cortes, na superfície do seu corpo sobre o “filho” (aqui o termo se refere aos ossos do finado que, depois de limpos, são cobertos para receberem o sangue e as lágrimas, vertidos pelos “pais” rituais), enquanto a mãe comum derrama o sangue natural do corpo, por ocasião dos partos.

Com o tempo, a prática da representação dos mortos de metade pelos homens vivos de outra acaba envolvendo um grande número de indivíduos de uma mesma comunidade que, pelo fato de se deslocarem frequentemente para outras aldeias, criam teias de relações de solidariedade intercomunitária. Isto porque casais de “pais” rituais carregam consigo as cabacinhas, enquanto os “filhos” levam os enfeites, que receberam por ocasião da oferta do animal de desagravo. Tais artefatos são acompanhados de nomes funerários. Nomes, enfeites e cabacinhas são códigos sonoros e visuais de funerais realizados, propiciando formas de tratamento respeitoso entre visitantes e hospedeiros.

A duração do processo funerário associa-se, de modo direto, à produção de certos objetos e à consecução de certas atividades exigidas para as diversas etapas: a primeira inumação, exigindo cantos especiais; a fase intermediária ou espera pela decomposição do cadáver, requerendo danças e cantos, confecção de roupas cerimoniais e pintura corporais, preparo de bebidas e cigarros; a fase final, ou lavagem e decoração dos ossos, exigindo a confecção de cestos ossuários pelas irmãs clânicas dos “representantes”, objetos emplumados ou d penas (cabacinhas, pregos), pelos “pais” rituais, enquanto cabe aos “filhos” a tarefa de lavar, pintar e emplumar os cestos e ossos, depois do que devem costurar a boca dos cestos antes de sepultá-los fora da aldeia. Já a fase final de liberação do luto, requerendo o abate de um animal de desagravo pelo “representante”, que é generosamente recompensado. A realização de todas estas tarefas implica a ajuda dos parentes dos protagonistas, de modo que a longa duração e extrema complexidade dos funerais Bororo exigem um aproveitamento máximo de potencialidades associativas. Podem participar do processo funerário parentes distantes, visitantes de outras aldeias que, cortando o próprio corpo, oferecendo animais de desagravo, cantando e dançando, sem que lhes tivesse sido ordenado, acabam sendo recompensados e inseridos nos circuitos de trocas funerárias. Criam-se assim réplicas mais tênues dos fortes focos de solidariedade moral e material, que amalgamam vitaliciamente “pais” e “filhos” rituais, por intermédio de alimento preparado por mulheres, mães rituais que alimentam as almas. Nestas réplicas os homens da aldeia fecham as portas da casa central, agora um refeitório de “almas”, onde como reino dos ancestrais, a comida não é oferecida por mulheres, segundo o exigiria a etiqueta dos vivos, mas de um homem para outro, longe da vida terrestre. Neste lugar misterioso, de encontro entre vivos e mortos, nascem e crescem os heróis míticos Bakororo-doge que, criados em uma cabacinha e não no ventre da mãe, alimentados por Onça, seu “pai” ritual, logram pela caça e pela guerra vingar a mãe morta, seduzida por um ser maléfico, e restabelecer a ordem do mundo.

Fonte: Implicações Adaptativas do Funeral ao Processo de Mudança Social entre os Bororo de Mato Grosso de Renate B. Viertler – Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia FFLCH-USP. in Rituais Indígenas Brasileiros  / Vários autores. - São Paulo: CPA Editora Ltda., 1999


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