Os
alimentos preparados pela “mãe” ritual são levados para a choupana
central por seu marido, o “pai” ritual, que, a portas fechadas, o
oferece ao “representante” do seu finado. Visto as caçadas e pescarias
das “almas” congregarem obrigatoriamente todos os “representantes” de
finados presentes na aldeia, é possível avaliar a sua importância para
a economia comunitária, principalmente pela vitaliciedade dos encargos
assumidos. Instauram-se laços de solidariedade moral e econômica entre
os casais de “pais” rituais e seus respectivos representantes. Estes
últimos são designados de “filhos” pelo casal de “pais” rituais que,
complementarmente, são designados de “mães” e “pais” pelos
representantes. Portanto os funerais engendram, “famílias” rituais que,
em nome dos mortos, se devem respeito e cuidados mútuos até o fim de
suas respectivas vidas. Parentes rituais respeitam-se mais do que
parentes comuns, não devendo brigar nunca e oferecer-se sempre os
recursos materiais e espirituais mais nobres, de modo a gerar fortes
focos de coesão social.
Sob
o ponto de vista sociológico, a instituição da representação dos mortos
tem como ponto de partida de que o “filho” ritual seja sempre escolhido
dentre os melhores caçadores da outra metade à do finados. Assim,
morrendo homens ou mulheres Ecerae, seus “representantes” devem
pertencer à metade Tugarege. E, vice-versa, morrendo um Tugaregedo,
deverá ser escolhido um Eceraedo. Deste modo, o “filho” ritual pertence
à mesma metade do “pai” ritual, e “mãe” e “filho” rituais pertencem a
metade diversas. Invertem-se assim as regras de descendência, bem como
os padrões de comportamento recíproco entre os parentes, pois quem
oferece o alimento ao “filho” ritual não é a “mãe”, mas sim o
“pai”; o “mãe” ritual permanece espacialmente afastada do seu “filho”,
enquanto mães e filhos pequenos comuns nunca se afastam uns dos outros;
a “mãe” ritual jorra o sangue, vertido por meio de cortes, na
superfície do seu corpo sobre o “filho” (aqui o termo se refere aos
ossos do finado que, depois de limpos, são cobertos para receberem o
sangue e as lágrimas, vertidos pelos “pais” rituais), enquanto a mãe
comum derrama o sangue natural do corpo, por ocasião dos partos.
Com
o tempo, a prática da representação dos mortos de metade pelos homens
vivos de outra acaba envolvendo um grande número de indivíduos de uma
mesma comunidade que, pelo fato de se deslocarem frequentemente para
outras aldeias, criam teias de relações de solidariedade
intercomunitária. Isto porque casais de “pais” rituais carregam consigo
as cabacinhas, enquanto os “filhos” levam os enfeites, que
receberam por ocasião da oferta do animal de desagravo. Tais artefatos
são acompanhados de nomes funerários. Nomes, enfeites e cabacinhas são
códigos sonoros e visuais de funerais realizados, propiciando formas de
tratamento respeitoso entre visitantes e hospedeiros.
A
duração do processo funerário associa-se, de modo direto, à produção de
certos objetos e à consecução de certas atividades exigidas para as
diversas etapas: a primeira inumação, exigindo cantos especiais; a fase
intermediária ou espera pela decomposição do cadáver, requerendo danças
e cantos, confecção de roupas cerimoniais e pintura corporais, preparo
de bebidas e cigarros; a fase final, ou lavagem e decoração dos ossos,
exigindo a confecção de cestos ossuários pelas irmãs clânicas dos
“representantes”, objetos emplumados ou d penas (cabacinhas, pregos),
pelos “pais” rituais, enquanto cabe aos “filhos” a tarefa de lavar,
pintar e emplumar os cestos e ossos, depois do que devem costurar a
boca dos cestos antes de sepultá-los fora da aldeia. Já a fase final de
liberação do luto, requerendo o abate de um animal de desagravo pelo
“representante”, que é generosamente recompensado. A realização de
todas estas tarefas implica a ajuda dos parentes dos protagonistas, de
modo que a longa duração e extrema complexidade dos funerais Bororo
exigem um aproveitamento máximo de potencialidades associativas. Podem
participar do processo funerário parentes distantes, visitantes de
outras aldeias que, cortando o próprio corpo, oferecendo animais de
desagravo, cantando e dançando, sem que lhes tivesse sido ordenado,
acabam sendo recompensados e inseridos nos circuitos de trocas
funerárias. Criam-se assim réplicas mais tênues dos fortes focos de
solidariedade moral e material, que amalgamam vitaliciamente “pais” e
“filhos” rituais, por intermédio de alimento preparado por mulheres,
mães rituais que alimentam as almas. Nestas réplicas os homens da
aldeia fecham as portas da casa central, agora um refeitório de
“almas”, onde como reino dos ancestrais, a comida não é oferecida por
mulheres, segundo o exigiria a etiqueta dos vivos, mas de um homem para
outro, longe da vida terrestre. Neste lugar misterioso, de encontro
entre vivos e mortos, nascem e crescem os heróis míticos Bakororo-doge
que, criados em uma cabacinha e não no ventre da mãe, alimentados por
Onça, seu “pai” ritual, logram pela caça e pela guerra vingar a mãe
morta, seduzida por um ser maléfico, e restabelecer a ordem do mundo.
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