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Parque Xingu
Os Cinta Larga
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Cotidiano de uma Aldeia dos Cinta Larga

Do texto de Carmen Junqueira (Depto. de Antropologia, Pontifícia Universidade católica de São Paulo)
Boa parte do tempo dos Cinta Larga em Serra Morena é gasto em conversas, banhos no rio, passeios, e várias horas são reservadas para o descanso. No retorno da pesca ou da caça, ou quando o sol está muito quente, fica-se na rede dormindo durante uma ou duas horas ou, simplesmente se balançando. Os períodos de atividade produtiva são  entremeados por repouso, gasto em brincadeiras ou mexericos. Perambula-se de um lado para outro,  observando-se a natureza, sem aparentar preocupações com a obtenção regular de comida ou o armazenamento de reservas. Quanto maior o produto da caça, da coleta ou da  pesca, maior é o consumo e a redistribuição. Consome-se integralmente o alimento como se sua obtenção estivesse sempre assegurada. Nos intervalos, novos períodos de descanso.

O mesmo ritmo orienta as excursões de coleta. É verdade que caminham rapidamente pela mata, mas são muitos as paradas para descanso. Atividade e repouso se alternam. Pelo caminho, observam os detalhes da vida da mata: os alimentos disponíveis, os venenos e as plantas medicinais. Sem pressa se organizam para tirar proveito do passeio.
É difícil dizer se estão trabalhando ou perambulando. Mas não se passeia a esmo na floresta. A entrada na mata tem sempre um objetivo central, geralmente ligado à coleta.


Parte-se pela manhã. Em fila indiana, sem muita conversa,  observa-se a situação desse enorme arsenal de matéria prima que é a mata.
Os homens à frente, em marcha mais acelerada que a das mulheres, vez por outra desaparecem por entre as árvores. Correm velozmente ao primeiro indício de caça à vista: um pio, um chiado, um movimento, são os sinais, imperceptíveis aos sentidos não treinados. Mulheres e crianças não se detêm.
Cinta Larga
Parque indígena Serra Morena - RO, guerreiro Cinta Larga. Foto Jesco Von Puttkamer, 1976

"O nome “Cinta Larga” foi designado pelo fato de os indígenas utilizarem uma faixa da entrecasca de tauari Panderej, que significa “nós somos gente ou pessoas humanas” na altura da cintura. Os Cinta Larga se autodenominam Panderej, que significa “nós somos gente ou pessoas humanas”. (do sítio da Funai)
À medida que penetram mais fundo no mato, passam a deixar pequenos vestígios de sua passagem: uma folha dobrada, um ramo quebrado, que na imensidão de verde, folhas e ramos não se confundem com as marcas deixadas por outros. Pelo caminho, a cada instante, enfrentam-se obstáculos diversos. Ora são os igarapés a serem transpostos. Se a água é volumosa, improvisa-se uma ponte com um tronco de árvore. Mais adiante, pode-se deparar com o chão forrado de formigas. É hora de correr com todas as forças para cruzar a perigosa coluna.
Embora cada família cuide e colha de sua própria roça, o produto final é armazenado em depósitos comuns pelas diferentes famílias que moram numa mesma casa, sem levar em conta a quantidade produzida por cada uma.

E assim prossegue a caminhada, em meio a brincadeiras e pequenos sustos, até que se resolve parar. Senta-se para uma conversa animada, cada um se servindo das castanhas que se espalham pelo chão. Algum tempo passa até que os homens se juntam ao grupo, trazendo notícias do que viram ou caçaram. Mais conversas e mais castanhas. A andança recomeça e até que se chegue ao local previsto são várias as paradas diante das fruteiras.
Cinta Larga
Indígena Cinta Larga - foto de Jesco Von Putkammer, 1972
Se o objetivo é a coleta de mel, acampa-se nas proximidades da árvore a ser derrubada. Duas ou mais horas se passam até que tenham concluído o trabalho, fartado-se de mel e enchido os vasilhames que serão levados para a aldeia. Nesse espaço de tempo, as crianças não param de brincar. Um ou outro sai à procura de bambu e volta com uma pequena flauta, que passa de mão em mão. Se o som é apreciado, logo se inicia uma sessão de música. Os homens interrompem o trabalho para também participar. Quando, finalmente, tem início a retirada do mel, todos se aproximam para receber sua parte. O idealizador da viagem é quem distribui o que foi coletado. 
O retorno se dá no mesmo ritmo. Apenas as frutas e os eventuais obstáculos é que podem variar. Recolhe-se o que foi localizado na ida: castanhas, o que sobrou das fruteiras, madeira para ponta de flecha, a caça abatida e tudo o mais que tenha utilidade no momento. Cada mulher carrega o produto que vai para sua casa. Os homens, as armas.
Um passeio desse tipo pode durar 10, 12 horas ou mesmo mais. Passeios semelhantes são feitos para coletar castanha; outros, mais longos, visam os poções piscosos, a reversa de taquara para flecha. Dependendo da distância, leva-se inclusive algum alimento. Mas, quando a expedição se
prolonga por alguns dias ou meses, as mulheres levam consigo um volume de coisas de que podem dar conta de carregar sozinhas. E essa carga, geralmente, reúne quase tudo o que a família tem.

Certos passeios são esticados até uma aldeia amiga, um vilarejo ou  acampamento. Quem sai dificilmente diz quando volta. Fica-se alheio ao tempo. Se descem o rio de canoa, podem voltar a pé: livram-se do esforço de atravessar as corredeiras rio acima, abandonando a embarcação. O
regresso mais demorado lhes é indiferente, posto que a viagem é mais  importante que a data do retomo.

Caça, pesca, coleta e consumo combinam-se durante essas expedições em arranjos e proporções variados, de acordo com a necessidade, o desejo e a oportunidade. Não há descontinuidade significativa na passagem de uma atividade para outra. Os eventos se sucedem entrelaçados de tal forma que, por exemplo, a caça que não se deixou abater ou o fruto que não se consumiu por estar verde não condenam a expedição ao fracasso, mas se incorporam ao conjunto de acontecimentos que movimentaram a jornada. Essa característica marcante da comunidade Cinta Larga dificulta, de certa forma, a apreciação de cada atividade isoladamente, pois é dentro do contexto mais amplo da expedição que os acontecimentos ganham significado profundo.  
Cinta Larga
Indígenas Cinta Larga - foto de Jesco Von Putkammer
A tecnologia usada é simples, mas nem por isso o grupo está condenado a sobreviver sujeito a um trabalho extenuante e continuado. O esforço gasto para vencer distâncias, obstáculos da mata e do rio é atenuado pela liberdade de usar e dividir o tempo, de acordo com a conveniência do grupo.
As tarefas agrícolas não atraem muito os Cinta Larga, embora os produtos da roça sejam importantes na sua dieta. Dependendo da época, come-se diariamente a macaxeira, diversos tipos de milho, de cará e outros tubérculos.

Num raio de até 500 metros das casas, estão as roças, beirando os limites externos da floresta. Não ultrapassam em média um hectare de área e costumam ser usadas para dois plantios, pelo menos. Como nem todas as famílias plantam todo ano, derrubadas de mata não são frequentes.
A faina agrícola é designada "trabalheira", uma das poucas palavras brasileiras que usam. Significa ao mesmo tempo fazer força, cansar-se, enfadar-se. Trabalho sem atrativo, que não se aproxima daquele designado pelo termo pee mankii, que realça o fazer, produzir, sem conotação de tarefa desagradável.

A derrubada é realizada exclusivamente por homens e contrasta com o plantio, no qual a divisão de trabalho não é marcada com clareza. Fazer covas e plantar são atividades que podem ser executadas tanto por homens, como, em sua ausência, por mulheres. Havendo homem presente, a mulher não pega na enxada, mas, eventualmente, planta. A colheita e a retirada de tubérculos são feitas pela mulher. Geralmente a família cuida .do seu próprio pedaço de terra, as esposas definindo áreas que ficam sob a responsabilidade de cada uma.

O ritmo do trabalho na agricultura não é tão flexível como o da coleta, mas incorpora em escala menor as conversas, interrupções para assar e comer algum alimento. O plantio toma cerca de três ou quatro manhãs, nem sempre seguidas. Uma entrada na floresta para pegar mel, ou uma pescaria mais longa podem interromper a tarefa, que é retomada dias depois. Planta-se cada espécie em espaços previamente definidos. Mas, à medida que a tarefa progride, nem sempre o plano é seguido. Troncos não consumidos pelo fogo, geralmente numerosos, impõem desvios e limitação de área. Dessa forma, as plantas se misturam em diversos pontos da roça, imprimindo à colheita uma movimentação difícil por entre ramas e troncos espalhados por boa parte do terreno.
Com exceção do milho, os demais produtos são colhidos na medida da necessidade doméstica. A cada dois dias, as mulheres em pequenos grupos vão à roça: voltam carregadas de macaxeiras, cará. Somente nos dias de festa é que quase todas se reúnem em trabalho cooperativo, que se estende da colheita à preparação do mingau.
Do baixar das águas até a chegada da cheia, pesca-se à beira do rio com anzol ou flecha, a toda hora. Homens e mulheres, adultos e crianças, passam horas a fio acompanhando as brincadeiras dos que tomam banho, pegando pequenos piaus e piabas. Conseguem peixes um pouco maiores indo de canoa até o rio o meio do rio; mas, quantidades significativas, encontram-se apenas em locais distantes, nos poções situados rio abaixo e rio acima. Essas pescarias são mais demoradas; são viagens que deslocam mais de uma família. Não raras vezes, acampam no local mais promissor e por vários dias se fartam de peixe. No retorno, às vezes, nada trazem, mas podem também voltar carregados de peixe, caça, frutos ou matéria prima para o artesanato. No final da estação chuvosa, homens e meninos pescam nos igarapés menores da redondeza, envenenando a água com timbó.

A canoa é uma aquisição recente. Antes dela, cruzavam rios e igarapés a nado ou improvisando pontes nos locais de corredeiras . Com a canoa aumentaram-se as possibilidades da pesca mais produtiva, a freqüência dos passeios e mesmo a caça noturna.
Cinta Larga
Indígenas Cinta Larga
A caça é a atividade que mais apreciam, principalmente se puder ser feita com espingarda. As poucas armas disponíveis em Serra Morena circulam intensamente durante a estação seca, desde que haja munição.

Nessa época, a caça noturna é mais comum. Dois ou três homens partem de canoa em direção aos "barreiros", locais freqüentados pela caça, sempre que a fase da lua propicia noites escuras. Em 1980, num período consecutivo de 60 dias, foram realizadas 33 caçadas, com duração que variava de poucas horas a um dia. O insucesso é raro, tal a quantidade de paca, anta, veado, jacaré e muitos outros animais na área.

Durante o dia, a caça é mais imprevisível. Macacos, mutuns e onças são surpreendidos no decorrer das excursões de coleta ou nas pescarias. Apenas quando se localiza um bando de caititu ou de queixada é que os homens saem de dia com o objetivo de apenas caçar.

Não é fácil calcular o raio de dispersão dos caçadores. Acredito que a distância média não ultrapasse 10 ou 15 km. No reconhecimento da mata que fazem durante as excursões, localizam não apenas os alimentos que consomem mas também as espécies preferidas de alguns animais. Tão logo esses frutos amadureçam, o local passa a ser visitado pelos caçadores . Para pegar tucano, por exemplo, constroem pequenos abrigos no ponto mais alto do tronco da fruteira, onde aguardam pacientemente a chegada do pássaro. Na orla da floresta, nas capoeiras, nas roças, erguem-se as cabanas de galhos, de palmas, usadas para surpreender passarinhos. É a atividade cotidiana da primavera, apreciada pelos homens e que serve de treino aos meninos.

A produção, a distribuição e o consumo de alimentos são praticamente indissociáveis. Sucedem-se no tempo como uma única operação da sociabilidade. Para melhor compreender o processo, entretanto, convém apresentá-lo em dois momentos:

1. No meu entender, há uma regra tácita que define como "público" o produto exposto à comunidade, isto é, o produto que não está fechado em cestas ou pacotes. As coisas abertas, à vista, seriam assim livres. Durante as excursões de caça, pesca, coleta, ou passeios pelos arredores da roça, deixa-se de comer apenas quando o alimento acaba ou quando acaba o desejo. Desse modo, e com exceção da castanha e do mel, os alimentos trazidos para a aldeia são o que sobrou do repasto. Isso quer dizer que, via de regra, ninguém sai de casa para ir buscar comida na floresta, por exemplo. Vai-se em direção às fontes de alimento com o propósito de comer. A carga trazida no retorno é o sobejo. Parte dela pode, evidentemente, voltar escondida por qualquer motivo, mas o que é exposto está liberado para a distribuição, seja ela espontânea ou provocada. As duas modalidades são corretas: pede-se o alimento ou recebe-se espontaneamente uma porção.

2. A caça grande ou o produto de grandes pescarias são distribuídos no retorno à aldeia. O dono retém uma boa porção para o consumo dos membros de sua casa e reparte o resto. Daí para frente, aplica-se a regra anterior.

Fica claro que, em larga medida, a abundância é que favorece o exercício dessas práticas.
Durante todo o ano, os Cinta Larga podem obter alimento em quantidade suficiente sem ter que dispender grande esforço na atividade produtiva propriamente dita. A prodigalidade da natureza permite que a face material da comunidade se expresse através de uma distribuição desprendida e que constitui um dos fundamentos da reprodução do grupo local.

Fonte: Os Cinta Larga / Carmen Junqueira (Depto. de Antropologia, Pontifícia Universidade católica de São Paulo) in Revista de Antropologia, Volumes 27/28.- São Paulo : Publicação do Departamento de Ciências Sociais (Área de Antropologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo, 1984/85


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