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Dialeto Caipira

Da língua geral ficou como remanescente o dialeto caipira, tema de dicionário e objeto de estudos lingüísticos até recentes. Sobraram pronuncias da língua tupi, reduções e adaptações da língua portuguesa. Um jesuíta, no século 16, já observara que os índios da costa tinham grande dificuldade para pronunciar letras como o “L” e o “R”. Especialmente na finalização de palavras como “quintal” e “animal”; ou verbos como “falar”, “dizer” e “fugir”. Essas letras foram simplesmente suprimidas e as palavras transformadas em “quintá”, “animá”, “falá”, “dizê”, “fugi”.

Dificuldades também havia para pronunciar as consoantes dobradas. Daí que, no dialeto caipira, “orelha” tenha se tornado “orêia” (uma consoante em vez de três; quatro vogais em vez de três), “coalho” seja “coaio”, “colher” tenha virado ”cuié”, “os olhos” sejam “o zóio”... 

Nheengatu e dialeto caipira

O considerado “falar errado” nesse caso de fato não é “errado”. Trata-se de um dialeto. No caso do falar caipira, trata-se do dialeto caipira, uma variação dialetal da língua portuguesa fortemente influenciada pelo nheengatu ou língua geral. O dialeto caipira não foi criado pelos jesuítas.

Foi o nheengatu, que de fato é tupi regulado pela gramática da língua portuguesa, com inclusão de palavras espanholas e portuguesas. A língua nheengatu se desenvolve numa época em que em que o Brasil, sendo colônia de Portugal, era da Espanha, em virtude da unificação das coroas desses dois países, de 1580 a 1640. Sobre o nheengatu, o padre Anchieta escreveu uma gramática e deixou várias orações e textos traduzidos. Do século XVII, há o dicionário de Pero de Castilho. Já o dialeto caipira é língua dialetal derivada da interação entre o português e o nheengatu. Estudos pioneiros a respeito foram os de Amadeu Amaral. Mais recentemente Ada Natal Rodrigues fez acurado estudo lingüístico sobre o dialeto caipira na região de Piracicaba. Aliás, na Universidade de São Paulo há um curso regular de língua tupi, ministrado por um competente especialista.

O dialeto caipira decorreu, no meu modo de ver, da predominância do português falado sobre o português escrito, num universo de fala em que a população também falava nheengatu cotidianamente, mais do que o português. Minha impressão é a de que o dialeto caipira resulta das dificuldades de nheengatu-falantes para falar o português. É nesse sentido que afirmo que o dialeto caipira é uma derivação ou um desdobramento do nheengatu. Ou seja, estamos falando de populações bilingües. Há algum tempo a Câmara de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, bem na fronteira, aprovou lei que reconhece o nheengatu como língua oficial, junto com o português (e o espanhol), pois sua população fala as três línguas. Presumo que haja casos desse tipo da região fronteiriça do Mato Grosso do Sul. 

É claro que o dialeto caipira, como qualquer língua, também é dinâmico e evolui. Nota-se isso na facilidade de incorporação de palavras novas da língua portuguesa, neologismos, mas também estrangeirismos, devidamente adaptados à pronúncia dialetal.

As dificuldades de pronúncia de certos sons da língua portuguesa pelos índios dos séculos XVI a XVIII e também pelos mestiços, seus descendentes, os chamados caipiras, marcaram fundo as sonoridades do dialeto caipira. Algo parecido com as dificuldades que nós temos para línguas estrangeiras e povos de outros países têm para falar línguas diferentes das suas. Um dos professores de inglês que tive na vida era escocês. Confessou-me ele que, apesar de ter sido educado em língua inglesa, continuava sentindo dores no rosto quando falava inglês (continuava falando o escocês) porque tinha que forçar a musculatura da face para falar a língua inglesa. Ou seja, há certos sons impossíveis de pronunciar corretamente numa boca estrangeira.

Os jesuítas utilizaram o tupi como referência para elaboração do nheengatu aparentemente porque foi a primeira língua com a qual tiveram contato no Brasil, falada pelas tribos da costa brasileira. Mas disseminaram o nheengatu em todo o Brasil, no trabalho missionário, até mesmo entre povos de outros troncos lingüísticos, como o jê, povos, aliás, inimigos crônicos dos povos tupi (caçadores, uns, e agricultores, outros). O nheengatu foi na verdade um modo de unificar lingüisticamente tribos que falavam variações da língua tupi. Foi, sobretudo, uma forma de ter além de uma fala, uma escrita. 
Na verdade, o dialeto caipira, resíduo de uma proibição do rei de Portugal, se refugiu no interior do Brasil, onde era menor o alcance da repressão lingüística determinada pelo monarca no século XVIII. Por outro lado, as cidades da costa, especialmente as cidades portuárias, estiveram sempre voltadas “para fora”, de costas “para dentro”, como dizia Frei Vicente do Salvador, primeiro historiador brasileiro, baiano do século XVII. A maior influência dos portugueses legítimos nessa área da colônia e, depois, do país, firmou-se, sobretudo, a partir do século XVIII, quando a capital da colônia foi transferida da Bahia para o Rio de Janeiro. Além disso, a fortíssima presença do negro escravizado nessa costa, atenuou a importância do dialeto caipira e introduziu sonoridades de línguas africanas, o que é bem claro na Bahia e em Pernambuco, mas também no Rio. Aliás, a USP também tem um curso de língua Yorubá, a mais falada das línguas africanas no Brasil e a mais presente em ritos e práticas religiosas.

Somos um povo bilíngüe, e o reconhecimento desse bilingüismo seria fundamental no trabalho dos educadores.

Dificuldades também havia para pronunciar as consoantes dobradas. Daí que, no dialeto caipira, “orelha” tenha se tornado “orêia” (uma consoante em vez de três; quatro vogais em vez de três), “coalho” seja “coaio”, “colher” tenha virado ”cuié”, “os olhos” sejam “o zóio”... E no Nordeste ainda se ouve a suave “fulô” no lugar da menos suave “flor”. Uma abundância de vogais em detrimento das consoantes, até mesmo com a introdução de vogais onde não existiam. Exatamente o contrario da evolução da sonoridade da língua e Portugal, em que predominam os ásperos sons das consoantes. No Brasil, a língua portuguesa ficou mais doce e mais lenta, mais descansada, justamente pela enorme influência das sonoridades da língua geral, o nheengatu. 

Nossa língua cotidiana está algo distanciada da língua portuguesa, que é a oficial e, num certo sentido, é uma língua importada. Não raro viajamos entre toponímicos tupi. Na Cidade de São Paulo transito regularmente entre o Butantã e Carapicuíba e o Embu, aonde levo meus alunos, periodicamente, para uma aula de rua. Ou os levo ao Museu Paulista, no Ipiranga, para outra aula, ou à Moóca, para observações etnográficas sobre uma festa italiana. Faço tudo isso dentro da língua tupi. Como posso ir do rio Guaíba à Paraíba ou ao Pará ou ao Piauí sem achar que estou falando uma língua estrangeira, que ela não é.

Em escolas rurais de povoados do Moto Grosso, do Pará e o Maranhão, observei um fato curioso. Uma vez que as crianças escrevem como falam, não e raro que acrescentem de preferência um “r” às palavras oxítonas, a letra usada como acento agudo: “ater”, em vez de “até”; “Joser”, em vez de “José”. Algo que tem sua curiosa legitimidade no modo como se escrevia oficialmente o português até ,meados do século 19, letras fazendo as vezes de acentos e sinais. A própria língua falada, no confronto com a escrita, oferece às crianças inteligentes a chave de adaptação de uma à outra: se elas dizem “falá” e vêm que a palavra escrita é “falar”, logo entendem que o “r” é aí acento, e não letra para ser pronunciada.

É comovente a reação dos jovens quando descobrem que são falantes do que resta de uma língua que já foi a língua do povo brasileiro e que conhecem um grande número de sons e palavras tupi. O que lhes dizem ser erro e ignorância é, na verdade, história social, valorosa sobrevivência da nossa verdadeira língua brasileira. Se não fosse assim, seria impossível rir daquela história de dois mineiros que resolveram temperar a prosa com café. E foram para a cozinha. Água fervida, coador pronto, um pergunta para o outro: “Pó pô o pó?”. E  o outro responde, firme:”Pó pô!”.

De fato, somos um povo bilíngüe, e o reconhecimento desse bilingüismo seria fundamental no trabalho dos educadores, em particular para enriquecer a compreensão da língua portuguesa, última flor do Lácio, inculta e bela, mais bela ainda porque invadida por esse outro lado da nossa identidade social, que teimamos em desconhecer.

José de Souza Martins, é professor titular do Departamento de Sociologia da USP


Fontes: http://www.sosaci.org/balaio2.htm
Folha de São Paulo – 20 de julho de 2003 (Colaboração: Mauricio Pereira)


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