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As
diferentes correntes de povoamento que se verificaram no Nordeste
seguiram, por seu turno, orientações diferentes, contribuindo,
destarte, para diversificar, ainda mais, as áreas culturais que
encerra.
Por tudo isso, é o Nordeste um verdadeiro mostruário de paisagens, de quadros, de cenas, de atividades, de costumes típicos regionais: desde o complexo paisagístico da praia, com os seus mangues, areais e coqueirais, com seus pescadores e jangadeiros, suas salinas e salineiros, até o mosaico da atividade econômica interior, embutido, de diversas peças e produtos da carnaubeira, a traduzir, em certos pontos, uma forma de civilização em torno de uma palmeira; um suceder de "feiras" e de "cercados", de "açudes" e de "coivaras", de "usinas" e "banguês" ... E em meio a tudo isso - como diria Vidal de La Blache - a manutenção, pela transmissão hereditária, de processos e invenções, que passaram a constituir, lá, qualquer coisa de metódico, assegurando a existência humana mediante a aplicação daqueles processos e invenções, num meio ingrato em que o homem atua reafirmando, cada vez mais, o seu papel de legítimo agente geográfico. É o que sucede, entre nós, por exemplo, com as famosas rendeiras do Nordeste. No principal centro de atividade industrial complementar, ou seja Aracatí, no Ceará, mantêm, as rendeiras, técnica tradicional adquirida por via portuguesa, provavelmente das antigas mestras e discípulas da região do Pui e seus arredores, autêntico foco na arte da fabricação de rendas, conhecido na França desde o século XV. A circunstância de se localizar, de preferência, a pequena indústria complementar das rendas no Nordeste, nas localidades banhadas pelo mar, nas que não são muito distantes da costa e, também, nos arredores das grandes cidades do litoral, circunstância que influi, sem dúvida alguma, para formar a conhecida denominação "rendas-do-mar" ou da "praia", com que se procura a expressão: "rendas de melhor qualidade artística", parece constituir - além de outros - razoável argumento em favor do Prof. Araújo Viana, que fez provir das localidades marítimas portuguesas, pelo menos, algumas das rendas do Brasil. Em Portugal, efetivamente, Peniche, Setúbal, Viana, Vila do Conde etc. foram lugares onde se tornou notória a fabricação de rendas; localidades onde as mulheres da classe marítima se entregavam como inúmeras das nossas, à delicada indústria rendeira. O fato, ainda, de ser o tipo geral de rendas, em Portugal, um tanto semelhante ao das de Pui, segundo opina a escritora portuguesa Maria Ribeiro Artur, citada por Viana, corrobora favoravelmente a opinião do antigo professor das Belas Artes. Em Peniche a indústria adquiriu muita importância. Não a limitavam ao fabrico de simples tiras. Todos os objetos a que fosse possível rendar, o faziam; o mesmo se dá - escreve Araújo Viana - em nossos estados do norte do Brasil. O fabrico das rendas é indústria regional no Brasil e inteiramente realizada por mulheres. A velha indústria caseira parece estar em declínio, permanecendo, porém, extraordinariamente dispersa pelo interior. De modo geral, nas grandes famílias cearenses, a certas horas do dia, com efeito, e na sala de frente, enquanto os maridos estão ocupados em outros misteres, ou já não existem, todas as mulheres da casa se entregam ao serviço das rendas, realizando ocupação honesta e inteligente. Há em tal ocupação "um não sei quê de austero, de docemente familiar, que nobilita os pobres lares, onde a virtude se exalta no trabalho e a pobreza é recebida com um comovente espírito de ordem e resignação". Quer no litoral, quer no sertão, na sala de frente, ou no terreiro - principalmente quando vai terminando o dia e o crepúsculo lentamente se aproxima - a cena se reveste de certa melancolia para a qual concorre o hábito das cantigas .e modinhas dolentes, soluçadas a meia voz. Indústria genuinamente popular e de iniciativa popular, fielmente conserva a tradição primitiva, sem a influência modificadora dos modelos estrangeiros recentes, copiados dos figurinos, ou adquiridos mediante adequada educação artística. Envolve mulheres quase sempre analfabetas, habitando casebres disseminados pelos arredores das cidades. Mediante remuneração exígua realizam, no entanto, "os belos artefatos destinados a enfeitar as roupas e as alfaias de gente rica". Em casos outros análogos (como sucede no Brasil-Sul, em Santa Catarina onde, nos arredores de Florianópolis, existe, em miniatura, também uma interessante indústria familiar de rendas) é de frisar a participação dos açambarcadores que, na espécie, são também mulheres, "senhoras de família". Comprando das rendeiras o produto de seu trabalho a preço ridículo, revendem-no para os agentes, do Sul do País, onde se têm celebrizado casas especialmente dedicadas à venda das rendas-do-norte. Quando não, são as próprias mulheres do povo, comercialmente mais espertas, as quais adquirindo as rendas diretamente das produtoras, correm a vendê-la, longe, a bordo, nos portos, em seus conhecidos "baús de folha", ou já nas suas melhoradas cestas de vime. As rendas brasileiras do norte, conforme a própria classificação das rendeiras, ou são de "cordão", ou são de "pano". Quanto à nomenclatura nordestina, o Prof. Araújo Viana, distinguiu a modalidade "bico" ou "ponta" (apenas renda, no Rio de Janeiro) e o produto que no Nordeste denominaram renda, o "entremeio" da linguagem carioca. Quanto aos tecidos, considera alguns como capazes de rivalizar com a melhor guipure francesa. Considerando a divisão universal das rendas artísticas em rendas de agulha e rendas de bilro, Araújo Viana inclui na primeira categoria o "crivo", pelo fato de ser o mesmo completado com agulha, salientando, porém, a espécie "conjunta", em que parte se faz com agulha e parte com bilro e de que há, no Brasil, belas variedades em Alagoas, Ceará e Maranhão. Já D. Otília Leite Brasil, funcionária do CNG e natural do Ceará, dá-nos uma descrição sintética atual. Praticamente é possível distinguir, segundo o modo por que foram fabricadas, a "renda" de almofada, o labirinto (que no Rio de Janeiro se chama "crivo") e finalmente o filet. Na primeira trabalha-se em almofadas com bilros, - peças semelhantes a fusos, com os quais se fazem rendas - alfinetes, espinhos de cardo, mandacaru, xiquexique etc. A renda, assim, já sai pronta dai almofada. Quanto ao labirinto, notam-se o "cerzido" e o "palhetão". No "cerzido" o pano é desfiado e bordado e serve para enfeitar blusas, vestidos, panos etc. No "palhetão", após fazer-se a malha, separadamente, borda-se, obtendo-se depois a renda. Relativamente ao filet, faz-se a malha, como no labirinto, mas numa aspa (barbatana) que depois é bordada. Seu emprego é em toalhas, colchas, cortinas, etc. No seu fabrico, considerando-se as diferentes zonas de produção de renda, apontam-se como linhas mais empregadas, a de novelo, a de carretel, a de algodão, de linho ou seda, do fio extraído da fibra da palmeira "tucum" (principal espécie: Astrocaryum vulgare, Mart. de 10 a 15 metros de altura, espalhada por todo o Brasil) e, também, fios de bananeiras (Musa paradisíaca L., com suas subespécies) . O trabalho das rendeiras consiste em "trocar os bilros" sobre um saco cilíndrico, de modo a comporem o "ponto" e com este prosseguir segundo a indicação dos "furos" no "papelão". Que a indústria das rendeiras exige certa especialização, basta que se saiba que é da maneira por que é feito o papelão que decorre toda a "ciência" da renda, exigindo para tal mister "especialistas" que o "picam" ou "pinicam" segundo linguajar técnico popular. Cabe à habilidade da rendeira executar à risca, com perfeição e asseio, o modelo que lhe foi proposto. A indústria das rendas no norte é uma indústria complementar, por sua causa é que a vida se torna possível em muitos lares. |
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